O "E" de enfermeiro é agora um duplo "E": Enfermeiro Exausto!

No setor da saúde, a gestão de recursos humanos há muito que precisa de um efetivo planeamento.

Realidade ou ficção, verdade ou demagogia, planear ou cortar, exausto ou a enganar, informar ou calar, gritar ou silenciar!?

Chego ao serviço antes da hora. Fardo-me. Coloco o meu cartão. Releio uma vez mais a palavra que ao longo dos quase 20 anos tantos sentimentos contraditórios tem gerado: Enfermeiro.

Na sala de trabalho consulto o horário para o próximo mês. Já existem 20 turnos extraordinários para completar. A enfermeira chefe solicita a compreensão de todos. A devida fundamentação da necessidade de mais enfermeiros no serviço já foi (re)enviada para o Conselho de Administração e a reposta sempre a mesma: Não há autorização para contratação! (Os dados recolhidos pela Administração Central dos Sistemas de Saúde, evidenciam sistematicamente que os serviços hospitalares têm menos enfermeiros que os necessários...)

Estou pronto para o início do meu dia de trabalho. Recebo o turno. A manhã (das 8h às 16:30) da minha colega foi caótica! Mais doentes do que está previsto (nos serviços de internamento é frequente haver doentes em macas para além da lotação do serviço), problemas burocrático/administrativos sistemáticos, aplicativos informáticos "pré-históricos" (há sistemas que demoram 10 minutos a "abrir sessão"), falta de material ou desajustado para as atividades, familiares preocupados e ansiosos, doentes mesmo "doentes" com imensas necessidades em cuidados de saúde.

A minha tarde (das 16h as 24h) foi similar ao turno da manhã. Avaliar cada situação, estabelecer prioridades, agir com conhecimento, competência e responsabilidade... Num confronto permanente entre os cuidados que devia prestar e a capacidade humana de os realizar. Espero ter tempo para reduzir a dor que oiço e vejo nos rostos frágeis. Espero que ninguém caia da maca, nem que nenhum doente contraia uma "infeção hospitalar". Hoje somos dois enfermeiros de tarde, deveríamos ser 4. Estamos nos mínimos... Não jantei, comi uma maçã, bebi meio litro de água e dois cafés. Às 22h, uma colega que vinha fazer noite telefona a informar que o filho piorou e não pode vir trabalhar. O meu colega já está a fazer dois turnos seguidos (dos tais extraordinários "previstos"). Por razões legais, éticas e deontológicas, só posso sair do serviço quando for rendido/substituído e, neste caso, será às 8:00 de amanhã. Ligo para casa. Atende o meu filho mais velho que pergunta, "estás quase a chegar, papá?" A resposta foi dada à mãe!

"E" sentimentos contraditórios...

O turno da noite acalmou pelas 4 da manhã, quando deixamos de receber doentes da urgência ou do bloco. Vigilância dos doentes, avaliação de sinais vitais, posicionamentos… até às 8:00h sem parar. Repito a maçã, a água e os cafés. Passei o turno e ainda fico a terminar os registos. Vou-me desfardar e volto a olhar o cartão. Sentimentos contraditórios. Mas o "E" de enfermeiro, é agora um duplo "E", Enfermeiro Exausto! São 9:30 e, mais logo, entro às 16h para completar as 40h! (A passagem de 35 para 40 horas, no caso dos enfermeiros, não se efetivou com mais uma hora de trabalho por dia, tal como grande parte dos "funcionários públicos", mas sim na perda de dois dias de folga por mês).

No mundo de ficção podemos admitir que um Ministro das Finanças não conheça o efeito do aumento de carga fiscal, que o Ministro da Economia não conheça os fatores de competitividade, que o Ministro da Justiça não conheça o Código de Processo Penal ou que o Ministro da Administração Interna não conheça a diferença entre GNR e PSP.

No setor da saúde, a gestão de recursos humanos há muito que precisa de um efetivo planeamento, de tal forma que garanta formação de profissionais adequada para satisfazer as necessidades das pessoas, e consequentemente custo/efetiva.

No mundo da ficção alguns líderes das organizações profissionais estão amorfos, relegados a um silêncio ensurdecedor, coniventes com o poder político.

No mundo real não é incompetência, são opções.

No mundo da ficção não emigravam cerca de 2000 enfermeiros por ano, reconhecidos e aceites em todo o mundo!

No mundo real a sistemática desvalorização dos profissionais de saúde terá efeitos a médio longo prazo, altura em que o ‘alzheimer’ não nos deixará recordar os atuais decisores e cúmplices.

No mundo da ficção, durante o ano eleitoral de 2015, existirão medidas de circunstância ou decisões salomónicas com efeitos após 2016.

No mundo real, temos a Constituição da República: “Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei; A todos os cidadãos é reconhecido o direito de manifestação; Todos têm direito à proteção da saúde e o dever de a defender e promover; (O Estado deve) Promover o aumento do bem-estar social e económico e da qualidade de vida das pessoas, em especial das mais desfavorecidas, no quadro de uma estratégia de desenvolvimento sustentável.

No mundo da ficção aplicam-se… sem recurso a Tribunal Constitucional, com o envolvimento e participação de todos os cidadãos… pela saúde, pela sociedade, pela justiça social, e acima de tudo pela dignidade do ser humano.

Presidente do Conselho Directivo Regional, Secção Regional do Sul, da Ordem dos Enfermeiros

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