Fortaleza do Pico cedida à Madeira pode transformar-se em estalagem

Arquitecto Luís Vilhena sugere criação de espaço cultural através de concurso de ideias. Historiador Rui Carita, especialista em fortificações militares, acha que cedência é “presente envenenado”

Fotogaleria
DR
Fotogaleria
DR
Fotogaleria
DR
Fotogaleria
DR

O Governo da República cede nesta sexta-feira a título definitivo, a Fortaleza do Pico de São João Baptista, no Funchal, à Região Autónoma da Madeira, deixando o imóvel de pertencer ao domínio público militar.

Satisfazendo uma antiga pretensão do governo madeirense, que também há muito reivindica a posse do Palácio de São Lourenço, antiga residência dos governadores da ilha e actual sede da representação da República na Região e do Comando Militar da Madeira, o conselho de ministros, na reunião do passado dia 26 de Junho, “desafectou do domínio público militar o imóvel designado por Fortaleza do Pico de São João, no Funchal, integrando-o no domínio privado do Estado, tendo em vista a sua cessão a título definitivo à Região Autónoma da Madeira”.

Esta cessão, refere o comunicado da reunião, tem como contrapartida a transferência da propriedade da embarcação Blaus VII para o Ministério da Defesa Nacional (Marinha) e a cedência do direito de uso das instalações do designado “Edifício Funchal 2000”, onde funcionam os Tribunais das Varas Mistas e Conservatórias, ao Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça.

A transferência da propriedade da Fortaleza do Pico, que hoje será formalizada pelo ministro da Defesa Nacional, José Aguiar-Branco, reabre o debate sobre a futura utilização que oficialmente não foi anunciada. A transformação em estalagem é tida como o mais provável destino da fortificação construída nas primeiras décadas do século XVII, sob a égide do governo filipino, como parte integrante do sistema defensivo da cidade do Funchal contra os ataques de corsários e piratas, frequentes nesta região do oceano Atlântico à época. Do alto de seus muros, podemos desfrutar de um dos melhores panoramas de 360º sobre a cidade.

Quando, antes das eleições regionais de 2004, foi noticiada a entrega, sem concurso público, ao grupo hoteleiro de Dionísio Pestana que projectou a adaptação do imóvel histórico a estalagem, a incluir no circuito de pousadas que explora, o presidente do governo regional garantiu que “isso é uma mentira, isso é falso”. Alberto João Jardim adiantou que pretendia “abrir a fortaleza à população, oferecendo um espaço de fruição” que, ressalvou, “não obstaculiza com uma utilidade rentável”.

Nesta fase inicial, defende o arquitecto Luís Vilhena, “há que encontrar o programa adequado e a função certa para que o conjunto mantenha no futuro, o seu carácter e respeite a sua história”. Na opinião do ex-presidente da delegação regional da Ordem dos Arquitectos, esse programa “não deve ser, de todo, deixado nas mãos de alguns decisores políticos ou reduzido aos pareceres técnicos e administrativos internos de uma só equipa de funcionários do Estado”.

Para Vilhena, o primeiro passo a dar, “o mais importante, é, através de um concurso de ideias, escolher o melhor programa funcional”. Do resultado deste concurso programático deverá ser elaborado o programa-base que dará origem ao concurso de arquitectura. Com esta metodologia, garante, irá “surgir um conjunto de ideias que surpreenderão certamente, tornará clara e transparente a decisão sobre este bem público e, com certeza, todos sairão a ganhar, sobretudo a história do Funchal e os seus cidadãos”.

Um dessas ideias, diz Vilhena, poderá passar pela transformação da fortaleza num “polo cultural, com diversas valências, coisa que o Funchal não tem, uma vez que se optou por uma política de descentralização de equipamentos do género pela ilha, sem ter em conta a sua dimensão ou a escala do território”. Numa análise imediatista o arquitecto admite a hipótese de ser colocado um museu/centro de interpretação dos descobrimentos portugueses, tendo em conta o papel fundamental que a Madeira teve na expansão marítima, completando o programa com outras funções de âmbito cultural e lúdico.

Independentemente da sua utilidade, “nenhuma intervenção poderá alterar a volumetria da fortaleza que é uma grande referência da cidade”, adverte o historiador Rui Carita. Com vista sobre toda a cidade e baía, o castelo tem uma estrutura composta por quatro baluartes pentagonais, em dois níveis, tendo uma praça de armas e casernas abertas na rocha pavimentadas com um piso de tijoleira do século XVII. O recinto, em forma de cidadela, ocupa uma área de 2.750 metros quadrados e está a uma altitude de 111 metros.

 “É o lugar apetecível para um restaurante de charme, dotado de uma pequena estrutura hoteleira de apoio”, admite Carita, alertando para a complexidade da obra de adaptação atendendo à inexistência de saneamento básico e aos elevados custos de manutenção. “É um presente envenenado”, avisa o autor do livro O Regimento de Fortificação do Funchal de 1572, doutorado, em 1993, com a tese Arquitectura Militar na Madeira, Séc. XVI a XIX.

“As edificações militares e religiosas são muito apetecíveis, mas passadas para civis constituem presentes envenenados”, insiste, apontando os exemplos do Forte de Santiago e o Fortaleza do Ilhéu, ambos da primeira metade do seculo XVII, cedidos ao governo regional em 1992. O primeiro passou de aquartelamento militar a Museu de Arte Contemporânea, abrigando “obras de arte, sem climatização e sujeitas aos efeitos corrosivos de maresia, o que é completamente criminoso”. O segundo, antigo paiol militar e estação semafórica, iniciou um novo ciclo entre a restauração e a animação nocturna, após a adulteração do espaço que implicou o desmantelamento do guindaste da Brown Lenox Cia, de 1845, para dar lugar ao letreiro luminoso que se foi apagando com a insolvência das sucessivas gerências conotadas com o poder regional.

Sugerir correcção
Comentar