Um Mundial de muletas

A cada dia que passa acumulam-se as lesões entre alguns dos principais jogadores e as suas selecções vão enfraquecendo. Um Mundial a meio da época teria jogadores em melhor forma?

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Cristiano Ronaldo tem preocupado a selecção Foto: Bartosz Jankowski/Reuters

A “maldição” das lesões caiu nos últimos dias sobre duas das maiores estrelas que os adeptos de todo o mundo aguardavam por ver nos relvados brasileiros. Franck Ribéry e Marco Reus vão falhar o Mundial e o planeta do futebol teme pela condição física de outros grandes jogadores, entre eles, o capitão da selecção e actual detentor da Bola de Ouro, Cristiano Ronaldo. Pode um Campeonato do Mundo sobreviver sem estrelas?

A lista de “incertezas” é vasta e são poucas as selecções sem inquietações. O terceiro melhor marcador do campeonato espanhol, Diego Costa, está ainda a recuperar de uma lesão nos tendões e faz tremer os actuais campeões. Manuel Neuer e Bastian Schweinsteiger podem fazer aumentar as “baixas” entre a Alemanha. O Uruguai ainda aguarda pela recuperação de Luis Suárez, que foi operado ao joelho esquerdo. Num jogo amigável, Robin Van Persie ressentiu-se de um problema na virilha e deixou a “laranja mecânica” em sobressalto.

A perspectiva de um Mundial sem jogadores deste calibre, ou numa forma abaixo daquela a que habituaram os adeptos, é desanimadora e retira o encanto pela qual é conhecida a principal competição do universo futebolístico.

Há um traço em comum entre os jogadores em risco de falharem o Mundial: o elevado número de jogos que fizeram nos últimos meses. Diego Costa, por exemplo, participou em 52 partidas durante a época pelo Atlético de Madrid, e Cristiano Ronaldo vem de 47 jogos pelo Real.

Depois de épocas desgastantes e competitivas, sempre ao mais alto nível, é natural que a condição física não seja a melhor no momento do Mundial. O antigo médico do FC Porto, Domingos Gomes, diz ao PÚBLICO que se tratam de “lesões tipicamente de supraesforço”, mas sublinha que não é apenas o cansaço acumulado que as explica. “Há muitos outros a fazer o mesmo esforço. Por que é que foram estes?”, questiona.

O especialista em Medicina Desportiva lembra que existem dois tipos de factores: intrínsecos e extrínsecos. Os primeiros têm a ver com os traços físicos de cada atleta. “Um atleta desta dimensão exige uma perfeição biomecânica. Têm que ter um bom equilíbrio da bacia com os membros inferiores, por exemplo”, diz-nos.

Por outro lado, há as variáveis avessas ao jogador. Domingos Gomes dá o exemplo da “mudança de uma chuteira” ou de um “pavimento mais duro”. E há sempre que contar com o desejo dos jogadores em entrar em campo, o que o pode levar a ignorar algum mal-estar. “Se o atleta esconde [a lesão] ou um departamento clinico não está atento, então vamos ter complicações. O músculo tem uma noção muito clara do seguinte: se as pessoas não lhe ligam, ele faz-lhe a partida a seguir”, adverte.

Como ex-jogador, António Oliveira sabe bem o que isso é. “Não conheço um jogador que não queira jogar um Mundial. Se tiver um pequeno toque, ele diz que está bem”, afirma o antigo seleccionador nacional.

E aí entra o papel da equipa médica, que ambos vêem como decisiva. Domingos Gomes lembra que é por vezes necessário tomar decisões difíceis, dando o exemplo da final da Taça dos Campeões Europeus de 1987, em que impediu jogadores do FC Porto de jogar frente ao Bayern Munique. Se não o tivesse feito, “em vez de jogarmos com onze, jogávamos com dez”, conta o antigo médico.

A situação relembra a final da Liga dos Campeões de Lisboa, entre Real Madrid e Atlético, em que Diego Costa pediu para sair aos dez minutos de jogo por problemas físicos. Domingos Gomes considera que os meios clínicos hoje em dia à disposição dos clubes e selecções ajudam a que não se cometam “distracções” do mesmo género.

Quando o Mundial se aproxima, é habitual notar em alguns jogadores um maior cuidado, sobretudo em lances de disputa de bola. O receio de sofrer uma entrada mais dura fala mais alto, mas essa opção também pode sair cara. “Há atletas que se querem proteger tanto que acabam por se lesionar”, observa Domingos Gomes. A razão é a “falta de espontaneidade nos movimentos”, o que pode ser “razão mais do que suficiente para dar origem a uma lesão grave”.

Mundial em Janeiro
A ausência de grandes jogadores das fases finais dos Mundiais por lesões contraídas no final da época não é algo de novo. Em 2002, Robert Pires desfalcou a França, que defendia o título na Coreia do Sul e no Japão. O avançado Djibril Cissé faria o mesmo, quatro anos depois, ao fracturar uma perna durante um amigável com a China. David Beckham, Michael Ballack e Michael Essien foram algumas das ausências mais notadas na África do Sul.

O Mundial corre assim o risco de se tornar numa competição em que os melhores jogadores – depois de épocas altamente desgastantes – ou se lesionam antes do seu início ou aparecem em má condição física. O debate sobre a calendarização do Mundial é antigo, dividido entre os que defendem a manutenção da competição no Verão europeu e os que preferiam vê-lo a meio da época.

António Oliveira lembra os constrangimentos que uma decisão deste tipo poderia acarretar. “São várias indústrias, de publicidade, televisões, marketing, que estão em jogo. Para isso, algumas competições seriam prejudicadas, por isso acho que nem a FIFA nem a UEFA iriam aceitar”, diz-nos.

Para Domingos Gomes, “em teoria, seria o ideal”. Mas o ex-médico sublinha que o Mundial, nestes moldes, é também “um teste, não só para o próprio jogador, mas também para as equipas técnicas que têm que fazer uma manutenção contínua, aumentando ou diminuindo as cargas físicas”.

Cada vez mais, a chave para vencer um Mundial está no trabalho de bastidores. Domingos Gomes oferece-nos a fórmula: “Os Mundiais são ganhos por uma boa equipa técnica que equilibra bem o treino mas, conjuntamente com isto, ganha-se com um bom equipamento médico.” O resto é com os jogadores, tanto as estrelas como os simples mortais.

Notícia corrigida às 15h25 - Diego Costa foi o terceiro melhor marcador do campeonato espanhol e não o primeiro.

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