E Portugal perdeu mais um símbolo

Com Eusébio, como há quinze anos com Amália, Portugal perdeu mais um símbolo da sua identidade.

Quando Amália morreu, a 6 de Outubro de 1999, quase à beira de fechar o século e um milénio, Portugal via partir um símbolo. “Com ela”, escreveu-se no PÚBLICO em editorial, “morreu uma parte do país e do povo que somos”. Mas também por causa dela, outra parte desse país e desse povo continuou viva, resistindo. Nesse dia, Eusébio disse: “Ela é… foi, sem dúvida, a máxima figura da música portuguesa. Quando a conheci pela primeira vez fiquei satisfeito: olhava-a como uma pessoa simples e modesta, como eu também sou, e a minha vibração reforçou-se. Já chorei, estou a chorar e ainda vou chorar… Não acredito.” Agora que morre Eusébio, muitos disseram e dizem ainda coisas parecidas. A incredulidade, a sensação de perda, o mito de traços humanos, tudo nele se conjugou para eternizar uma imagem em que todos os portugueses, não só os adeptos do futebol ou do Benfica (como também com Amália não só os amantes do fado), de algum modo se revêem. Como escreve nesta edição António-Pedro Vasconcelos, Eusébio “foi, sem querer, um símbolo para os portugueses do seu tempo”, porque, num tempo em que “ser português era sinal de opróbrio e de vergonha, Eusébio resgatou o nosso orgulho e devolveu-nos a dignidade”. E diz mais: que ele tinha “qualidades inatas para o futebol”, que “gostava de marcar golos e de ganhar, como se isso fosse uma obrigação que os deuses lhe exigiam em troca de o ter dotado de talentos invulgares”. Talentos esses que Bagão Félix (também num artigo nesta edição) refere como “uma certa expressão do desporto que deixou de ser a norma. Onde o que contava era tão-só o futebol jogado. De paixão pura, sem adiposidades. Sem mediatismos bacocos feitos de lugares-comuns”.

Mas Eusébio morreu e aqui estamos. Outra vez, como sucedeu com Amália, a ver desfilar multidões que lhe querem prestar homenagem, rever-se nele num momento em que a dor da perda se mistura, sem tino, às lembranças das vitórias, da simbologia de raiz humana, à enorme arte que, como em Amália, dificilmente se explica, como nota Medeiros Ferreira: “A grande dúvida (…) é saber se há algum método, algum treino, algum exercício repetido, algum reflexo criado, que transplante um atleta do seu meio e faça dele um génio.” Não há. Como não houve, ou haverá, muitos Eusébios ou Amálias.

Não por acaso, um poeta português, Manuel Alegre, dedicou a Amália e Eusébio poemas em que usou as palavras “teorema” e “teoria”, talvez em busca do inexplicável. Em Amália, notou “a música a palavra o teorema/ a teoria que busca o som e a forma”; em Eusébio, “Não era só o instinto era ciência/ magia e teoria já só prática. (…) Buscava o golo mais que golo: só palavra. Abstracção. Ponto no espaço. Teorema./ Despido do supérfluo rematava/ e então não era golo: era poema”. Teoria feita sonho, o sonho feito vitória. Há nisto, quando o derrotismo não o reprime e cala, muito do espírito português. Parte dele morre com Eusébio; outra, também por causa de Eusébio, há-de orgulhosamente resistir.

 
 
 
 

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