Forças Armadas: consequências graves de decisões piores

Os antigos e actuais chefes militares ainda são da escola onde se aprendia a fazer as coisas como devem ser feitas.

Nos primeiros dias de Outubro, ocorreu uma situação assaz grave no Centro de Tropas Comando, na Carregueira.

Estive a ponderar se haveria de tratar o tema publicamente. Acabei por me decidir pela afirmativa por três ordens de razões:

– Pela gravidade da ocorrência e perigo de contágio;

– Para chamar a atenção para os profundos erros cometidos pelo poder político, com a aparente conivência e, ou, docilidade da hierarquia militar, aquando das alterações legislativas que têm destruído, na prática, a justiça e a disciplina militares;

– Pela morosidade em que o assunto se arrasta e com a inação das chefias militares em tentarem melhorar o “sistema”.

O caso conta-se em poucas linhas.

Naquela noite, dois praças entraram no gabinete do oficial de dia e agrediram violentamente o capitão que estava de serviço. Surpreendido, o oficial não conseguiu dominá-los, mas logrou impedir que os mesmos saíssem da unidade, apesar do cada vez mais limitado pessoal de serviço, devido aos cortes brutais nos efectivos.

Cabe aqui abrir um pequeno parêntesis para referir que desde os tempos do saudoso general Firmino Miguel, como chefe do Estado-Maior do Exército (EME) que, no Exército, a acesso a munições reais por parte do pessoal de serviço está muito condicionado. (1)

No dia seguinte foi feita a respectiva participação, a qual seguiu os seus trâmites, ou seja: foi informado o Gabinete do chefe do EME e reportado a ocorrência à Polícia Judiciária Militar (PJM), ficando os putativos agressores confinados à unidade, mas não presos.

A PJM – que esteve para ser extinta há poucos meses, passando as suas funções para a PJ, o que foi parado, ao que se sabe, à última hora, pelo Comando da GNR que se opôs, e bem, a mais esta vilania política, que ia ser concretizada com a “falta de comparência a jogo”, por parte do conselho de chefes – a PJM, dizia, instruiu o processo e a seguir enviou-o para a PGR. Cabe agora à PGR proceder à investigação, que levará, eventualmente, à acusação devidamente fundamentada, que será enviada para o tribunal civil, competente.

É nesta penúltima fase que o caso se encontra e não parece estar fácil levar a coisa a bom porto, nomeadamente pelos vários silêncios existentes. Os dois soldados foram, entretanto, e por ordem da PGR, colocados em casa com residência fixa…

Vejamos, só para comparar, como as coisas se passariam nos tempos em que a instituição militar era levada a sério e a palavra de um oficial fazia fé.

Em primeiro lugar, não passava pela cabeça de ninguém fazer tal coisa, muito menos dentro de um quartel, mas, caso passasse, o oficial de dia pregava um tiro nos ditos cujos, se tal estivesse ao seu alcance e se justificasse e, no mínimo, chamava o sargento da guarda, que usaria os meios necessários e suficientes para reduzir os agressores a “inofensivos”, findo o que eram metidos na “choça”, onde ficavam a aguardar os desenvolvimentos futuros.

Seria de imediato levantado um auto de averiguações, na unidade, o qual, concluindo que a ocorrência caía no âmbito do Código de Justiça Militar (2), era o processo passado para a PJM, que o instruía, fora do escrutínio de qualquer autoridade civil (que não entendem nada do foro militar), seguindo o mesmo para o Tribunal Territorial Militar.

O Comando Superior do Exército nem sequer se preocuparia com tal incidente, dado que tal era tratado a nível da respectiva região militar, e nos órgãos competentes, na Armada e Força Aérea.

O processo decorreria célere, no fim do qual os “arguidos” voltariam ao serviço activo, caso fossem ilibados; ou levariam uma pena – se julgados culpados – que nunca mais esqueceriam, a cumprir em presídio militar, e que os acompanharia toda a vida, pois ficariaa registada na Cédula Militar, com as consequências daí decorrentes. (3)

A justiça estaria feita, ao mesmo tempo que o modo como tudo se passava era rápido, sem interferências que prejudicassem o serviço, e suficientemente dissuasor, para quem pensasse fazer algo semelhante no futuro.

O tempo passou e apareceram uns quantos “adiantados mentais”, insuflados de ideias muito “progressistas”, inflamados de “direitos” – ao mesmo tempo que faziam vista grossa aos “deveres” – e com ideias cretinas sobre falsos igualitarismos, e sabotaram isto tudo. A hierarquia militar, por sua vez, quedou-se meio pasmada a olhar para o filme que se desenrolava à sua frente e, se esboçou algum “mas”, ficou no segredo dos gabinetes.

Temos agora este caso cujo desenvolvimento aguardamos e a primeira pergunta que surge é: qual o móbil da suposta agressão? Pois o que consta é que se tratava de um ajuste de contas relativamente a informações dadas pelo oficial, que impediam os militares de serem nomeados para nova missão fora de portas.

Todo este caso (a que se deve juntar um outro ainda mais grave, ainda não deslindado, ocorrido há largos meses, que resultou no roubo de armas, num dos paióis da unidade) levanta uma série de questões, de que são exemplo: (4)

– Porque, aparentemente haverá tantas dificuldades na investigação?

– Estando igualmente a decorrer um processo disciplinar, o Exército não deveria estar já a encetar os procedimentos para dar por findo o contrato e irradiação das fileiras?

– Porque estão os arguidos em casa e não em prisão militar? (5)

– Por que é que passou pela cabeça dos eventuais agressores cometerem o acto dentro do quartel e não fora dele?

– Poderá haver algum gang constituído dentro do quartel, ou elementos de um gang civil infiltrados?

– Como podem ocorrer cenas destas sem que a cadeia de comando se aperceba de qualquer indício?

– Qual é, actualmente, o estatuto da PJM e seu futuro?

– Se um incidente destes ocorresse, por ex., no Kosovo, o que se fazia? Pagava-se o bilhete de avião aos agressores, para eles virem para casa, enquanto os seus camaradas ficavam na luta? (6)

– O que será necessário acontecer para que, quem com responsabilidades se convença que o actual sistema legal que enforma a justiça e disciplina militares está errado e precisa ser revisto?

Ou seja, no sistema vigente, os pressupostos do Direito Penal, a rapidez do processo, o exemplo, a retribuição à sociedade pelo delito cometido, para falarmos só destes, não são atingidos. Porém, os danos no tecido social e na vivência das unidades militares estão muito para além da superficialidade do que se vê e têm tendência para piorar. Pior ainda: os juízes militares, que restam, integrados em tribunais civis, são uma espécie de “verbos de encher”, por estarem integrados num colectivo de três, sem direito a veto, não redigindo sentenças ou acórdãos, limitando-se a concordar ou discordar.

À parte estas questões vejamos outras que, a montante, podem também ser causas primárias de ocorrências que ninguém deseja:

– Por que é que uma unidade com estas características está situada dentro da grande Lisboa?

– Será que se investiga devidamente os mancebos recrutados para esta especialidade de tropas (ou qualquer outras), sabendo-se o elevado nível de conhecimentos “sensíveis”, e a letalidade do armamento e equipamento que vão aprender a manusear? Ou considera-se que esta investigação é contra os “direitos humanos”?

– Será que não haverá um recrutamento algo excessivo de “Rambos”, que se podem vir a comportar como uma espécie de mercenários, coisa que o fim trágico do SMO potenciou?

– E não haverá, por outro lado, um recrutamento excessivo de mancebos  oriundos do concelho onde se situa a unidade, e circundantes, concelhos maioritariamente constituídos por “suburbanos”, com tudo o que isso acarreta?

Estes assuntos são para serem tratados por profissionais, não por amadores. Os antigos e actuais chefes militares ainda são da escola onde se aprendia a fazer as coisas como devem ser feitas. Infelizmente, por uma razão ou por outra, a maioria foi-se deixando enredar e amolecer pela “paisanice podre” que se tem vindo a instalar e pela “demagogia delirante” que invadiu a sociedade – e que leva, actualmente, a que um tribunal condene um militar da GNR a cadeia e indemnização, e a soltar o criminoso que perseguia, por ter atingido, mortalmente (por acidente) o filho deste, que acompanhava o pai num assalto! (7) – e não tem conseguido colocar “comportas” que impeçam a destruição das FA.

E dado o lote extenso de barbaridades cometidas, só temos é de nos admirar de como as coisas têm corrido relativamente bem.

A massa humana que chega às FA é, em geral, boa, o espírito militar incutido, amalgamado por séculos e as NEP (normas de execução permanente) fazem o resto. Mas quando a instituição militar cai, cai a pique. E pode arrastar a Nação com ela.

 

NOTAS

1) Esta frase contém alguns eufemismos que não vamos explicitar. A regulamentação existe desde o tempo daquele general, prematuramente desaparecido, e não foi alterada até hoje. Uma observação atenta da directiva revela que a mesma põe, de certo modo, em causa a própria missão e essência do Exército. E surgiu na sequência de alguns acidentes ocorridos na instrução, no então regimento de comandos e noutras unidades do Exército, há mais de 20 anos… Claro que, hoje em dia, já quase ninguém se lembra de nada.

2) O primeiro dos quais teve letra de forma, em 1875.

3) E, enquanto o processo decorresse, a promoção dos militares ficava suspensa e, se fossem presos, o tempo da pena era descontado do seu tempo de serviço.

4) Infelizmente, outros casos do foro criminal têm ocorrido um pouco por todo o lado, sendo o mais grave o desaparecimento de armas numa unidade de fuzileiros, também ainda não resolvido.

5) O único presídio militar, que resta, situa-se em Tomar.

6) Lembra-se que a actual legislação só permite a instalação de tribunais militares em tempo de guerra, e o país não está, oficialmente, em guerra com ninguém…

7) Qual seria o general que, hoje em dia, se atreveria a defender uma sentinela que desse um tiro num tipo qualquer que assaltasse um quartel, por ex.?

Oficial piloto aviador

 

 

 
 
 
 
 
 
 

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