Presidencialismo de Erdogan pode levar a “uma séria crise de regime”, advertem analistas

O futuro presidente vai ter dificuldade em exercer o poder executivo que ambiciona sob pena de abrir novos confrontos

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A "vontade popular" renovou o poder de Erdogan BULENT KILIC/AFP

A vitória de Recep Tayyip Erdogan nas eleições presidenciais de domingo marca uma ruptura na vida política turca. O ainda chefe do governo e líder do Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP), que exerce o poder desde 2002, interpreta a sua vitória como um aval popular ao seu projecto de instaurar um regime presidencialista e concentrar os poderes. A Constituição em vigor não o permite. Mas, dias antes do voto, Erdogan declarou abertamente a intenção de usar os seus poderes executivos enquanto “líder eleito da nação”, mesmo antes de uma revisão constitucional. “O povo vai escolher o seu presidente e um presidente activo. É preciso dar esse passo.”

O líder do AKP venceu logo na primeira volta com 51,8% dos votos. Tomará posse no dia 28. Até lá, o AKP fará um congresso extraordinário para designar o seu sucessor no partido. Esse nome deverá ser aprovado pelo próprio Erdogan que, depois da posse, nomeará o novo primeiro-ministro.

Fala-se em vários nomes, como no ministro do Negócios Estrangeiros, Ahmet Davutoglu. Para os analistas, será um político da estrita confiança de Erdogan. O actual Presidente, Abdullah Gül, declarou não tencionar voltar a ser primeiro-ministro. Mas regressará à política e ao AKP “É uma coisa natural. Sou o seu fundador, fui o seu primeiro chefe do governo e presidente.”

“Caos institucional”?
O futuro PR deu um eloquente sinal logo que os resultados foram anunciados. Foi orar à mesquita de Eyüp, como faziam os sultões otomanos quando subiam ao trono. A dimensão da vitória não foi tão arrasadora quanto o AKP desejava. Mas Erdogan passa a dispor da legitimidade de ter sido eleito por sufrágio directo, o que para ele é o bastante. Na sua concepção, a “vontade popular” expressa no voto sobrepõe-se à separação dos poderes.

As eleições legislativas estão previstas para Junho de 2015 e só então se poderá abrir um processo constituinte para instituir um regime presidencialista. Dificilmente o AKP terá os necessários dois terços dos deputados. Especula-se que Erdogan tentará negociar o apoio dos deputados curdos.

Mas este é um horizonte a médio prazo. Que se vai passar agora? “Por várias razões, a principal dificuldade de Erdogan não era vencer as presidenciais, mas a fase que se vai seguir”, declara à AFP o politólogo turco Ziya Meral, professor em Cambridge.

A relação entre o PR e o governo vai ser complicada, prevê outro politólogo, Ali Carkoglu, da Universidade Koç de Istambul: “Seja qual for o [primeiro-ministro] escolhido, ele vai criar problemas no sentido em que a Constituição não foi redigida para este género de exercício do poder.” O Presidente tem o direito de convocar o Conselho de Ministros mas não o de propor leis ou de fazer campanhas em nome do próprio partido. Deve permanecer “neutral” nas decisivas legislativas de Junho, o que não é muito conforme ao temperamento de Erdogan.

Prevê outro politólogo, Ahmet Insel: “Erdogan vai utilizar até ao extremo todos os seus poderes constitucionais e isto vai conduzir a uma séria crise de regime na Turquia, fonte de mais instabilidade e turbulência.”

“Isto significa que, durante mais de um ano, a Turquia vai viver numa atmosfera de caos institucional”, escreve o editorialista Kadri Gürsel, do diário Milliyet.

O país está polarizado e o último episódio foi a “guerra” desencadeada entre Erdogan e o movimento Hizmet, do líder religioso Fetullah Gülen. Gülen foi aliado do AKP e ajudou-o a modernizar-se e a aliar-se às elites liberais. Travam hoje um combate sem trégua. O Hizmet, com grande influência na educação, nos media, na polícia e na magistratura, continua a ser objecto de uma sistemática depuração.

O Tribunal Constitucional
Depois da neutralização dos militares e da instituição da supremacia do poder civil, Erdogan não parou. Ao longo dos últimos dois ou três anos, “domesticou” o poder judicial, os grandes media, em particular as televisões, fechou redes sociais. Invoca sempre a legitimidade eleitoral em detrimento da separação dos poderes.

Restam duas instituições independentes: o Tribunal Constitucional e o Banco Central. Erdogan deve ao presidente do TC, Hasim Kiliç, ter bloqueado a tentativa de ilegalização do AKP em 2008, a pretexto da sua acção contra o laicismo. Nos últimos meses, o TC tem-se mostrado irredutível perante as pressões do governo. Também o Banco Central tem estado em conflito com Erdogan. Uma interferência presidencial pode pôr em causa a estabilidade económica.

Gürsel adverte: “O risco para Erdogan é que pode ficar acabar por ficar preso na armadilha da presidência, incapaz de exercer os poderes que quer devido aos obstáculos que lhe sejam levantados pelo TC.” Ou pior: “Num clima tão polarizado, o culto de Erdogan constitui uma ameaça para a democracia e a paz social na Turquia.”

Erdogan não tomou posse e pode sempre reservar surpresas.

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