Os valores da democracia e o terrorismo

A tortura converte os Estados em terroristas

Bin Laden não atingiu os seus principais objectivos nos ataques terroristas aos EUA, nomeadamente no 11 de Setembro: o apoio a Israel continua a ser uma constante de qualquer politica norte-americana, a presença de tropas norte-americanas no solo sagrado da Arábia Saudita mantém-se e a adopção da lei da sharia não tem avançado no mundo.

No entanto, há uma vitória imensa de Bin Laden sobre todo o mundo ocidental e sobre os EUA, em particular, que todos temos vindo a  sofrer e cujas consequências para as gerações futuras são, ainda, difíceis de imaginar.
Bin Laden conseguiu converter em política da democracia norte-americana a espionagem e a recolha indiscriminada de dados privados de quase todos os cidadãos do mundo, norte-americanos ou não. E, sobretudo, Bin Laden conseguiu converter em politica da democracia norte-americana, com a conivência de diversas outras democracias, a tortura apresentada como método eficaz de combate ao terrorismo. Serão estas perversas vitórias de Bin Laden definitivas ou irreversíveis?

É evidente que há alterações legislativas e práticas subsequentes que muito dificilmente voltarão atrás: o Patriot Act, por exemplo, aprovado nos EUA na sequência do 11 de Setembro, legalizou inúmeras práticas violadoras dos direitos individuais, nomeadamente a nível da privacidade dos cidadãos, que já fazem parte da normalidade norte-americana.

As revelações de Edward Snowden-Wikileaks mostraram-nos a todos como um poder, mesmo em democracia, actuando, na prática, em roda livre, pode durante anos e anos proceder à recolha de informação pessoal e privada de cidadãos de todo o mundo sem qualquer objectivo definido ou utilidade real. E ninguém sabe como é que esta informação vai ser utilizada,  porque “a ocasião faz o ladrão” e o Estado, ainda que democrático, é incansável na sua busca de novas funções e actividades. Porque desmascararam abertamente estes procedimentos, não como terroristas em busca da destruição da democracia, mas como guerrilheiros da liberdade e da individualidade, Snowden está exilado na Rússia e Assange está exilado numa embaixada em Londres refém de duas democracias, a inglesa e a sueca, ao serviço da democracia norte-americana.

Mas esta semana, a mais sinistra das vitórias de Bin Laden começou a revelar oficialmente as suas fragilidades, o que nos permite pensar que a tortura como política de um Estado democrático poderá estar irreversivelmente abalada: uma investigação do Comité de Serviços Secretos do Senado às actividades da CIA no combate ao terrorismo, que está em vias de ser tornada pública, ainda que parcialmente, permitirá demonstrar a falsidade da argumentação que defende a tortura como prática eficaz contra o terrorismo, argumentação esta que tem justificado que se ignore o princípio de que a tortura é um mal absoluto e que se ignorem as limitações à investigação decorrentes da moral ou da ética.

Uma das ironias desta derrota de Bin Laden e dos seus sequazes é o facto de a investigação do Senado ter concluído que, contrariamente ao afirmado e  insinuado pela CIA ou pelo filme 00:30 Hora Negra  (Zero Dark Thirty ), a informação que permitiu a descoberta do esconderijo de Bin Laden no Paquistão não terá resultado de informação obtida através da utilização de tortura, mas sim de informação obtida através da espionagem.  Embora ainda não tenha sido divulgado o relatório do Senado parece claro que os responsáveis da CIA, contaminados pela indignidade da tortura praticada pelos seus agentes, mentiram aos mais altos governantes e ao povo norte-americano sobre as vantagens e a eficácia da utilização das “técnicas agressivas” nos interrogatórios. Esta possível derrota póstuma de Bin Laden alicerça-se, assim, nas virtualidades da própria democracia norte-americana.

A tortura não foi útil, nem eficaz no combate ao terrorismo e, diga-se de passagem, faz mais sentido discutir o sexo dos anjos do que a distinção jurídica entre “técnicas agressivas” e “tortura” quando se está a falar, por exemplo, do afogamento simulado.  A tortura é, nos termos da Convenção das Nações Unidas contra a Tortura, “qualquer acto por meio do qual uma dor ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são intencionalmente causados a uma pessoa com os fins de, nomeadamente, obter dela ou de uma terceira pessoa informações ou confissões...”. Ora, no afogamento simulado, o sofrimento físico e psíquico é enorme, vivendo a vítima não só uma dor violenta mas, sobretudo, o absoluto convencimento de que está a morrer.

Parece que, afinal, resultará desta investigação que não só os fins não justificam os meios como os meios não servem sequer os fins. A bem da saúde das democracias e a mal do terrorismo.

Advogado, ftmota@netcabo.pt

 

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