O legado de Mandela está vivo em Qunu

No Natal, Mandela dava a todas as crianças de Qunu um brinquedo, um caderno, uma peça de roupa. E dizia-lhes: “Vão para a escola e fiquem na escola.” Na última despedida do herói, não há sentimento de perda comparável àquele que é sentido na terra onde ele cresceu. “Ele ensinou-me que era possível eu alcançar os meus sonhos.”

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No último longo regresso de Nelson Mandela a casa a Qunu, as ruas enchem-se de música, bandeirinhas e cor – e os rostos de sorrisos. Os festejos ajudam a espantar a dor e, sobretudo, o vazio. Por toda a África do Sul, Madiba é adorado. Na terra onde cresceu, é como um deus. “Senti a sua presença quando o caixão chegou”, diz Lindi Zokufa, 32 anos, inebriada. Fala por vontade própria e necessidade de partilhar. E de lembrar aquele momento, em que ouviu os helicópteros a sobrevoar Mthatha, e desceu a rua a correr para ver Mandela passar – uma última vez. Dentro do carro preto, uma bandeira da África do Sul cobria o caixão, e o cortejo seguiu até Qunu, como em procissão de um santo. À chegada, foi entregue ao partido e só depois à família. O funeral é este domingo.

“Descanse em paz, Madiba.” É um desejo colectivo, mostrado em cartazes em todos os cantos da África do Sul. Toda a gente quer o bem para Mandela. Mas em Qunu, onde quase todos conheciam pessoalmente Mandela, esse desejo é palpável. Muitos jovens sorriem, vestem-se a preceito, contam o que sabem sobre Mandela. Mostram o que resta da cubata (um espaço apenas) que foi a sua primeira escola, junto ao museu de Qunu.

“Ele era um homem bom.” Kekana Geledwana tem 92 anos e o mesmo nome de clã de Mandela – Madiba. Os mais novos tratam-no por Tatomkhulu [avô] Madiba em sinal de respeito. De qualquer ponto do seu quintal, pode ver, na colina em frente, um outro quadrado de terra com três cubatas e duas casas muito arranjadinhas, que construiu para a extensa família; é ao lado desse quadrado de terra, rodeada de árvores, que se ergue a grande casa de Mandela.
Os dois Madibas só se tornaram amigos depois de velhos, mas é como se se conhecessem desde sempre. Os filhos e os netos de Kekana Geledwana pastam ovelhas e gado nas mesmas planícies onde um dia Nelson Rolihlahla Mandela jogou à bola e brincou, numa terra onde a riqueza de um homem se media pelo número de ovelhas e vacas – o que continua a ser um pouco assim. Ambos são Madibas porque têm o mesmo antepassado. E isso, na terra dos xhosa, tem um significado quase espiritual.

“Nas cerimónias fúnebres xhosa, o caixão fica aberto para as pessoas verem o corpo antes de ser enterrado no quintal”, explica Zozibini Ngqeleni, guia do Museu Nelson Mandela em Qunu. “As pessoas da família e da comunidade vêm uma a uma, durante a cerimónia presidida pelo padre. Sacrifica-se uma vaca e as pessoas têm de a comer. Representantes da comunidade homenageiam, com palavras, o morto. E os presentes ficam acordados até ao funeral de manhã”, explica.

Funeral no quintal

Como todos os xhosas, sejam eles do reino Thembu, como era Mandela, ou do reino Pondo ou Baca (entre outros), o ritual da cerimónia termina com o enterro no quintal da casa. Nos funerais comunitários, os mais jovens são chamados a cavar a sepultura. Não vai acontecer no caso de Mandela. Mas mesmo assim, Sithembiso Soyaya, 32 anos, fez questão de estar aqui. Para ajudar no que for preciso. É xhosa, do clã Manci. Sente que Mandela podia ser um dos seus. “Ainda não verti uma lágrima por ele. Mas estou em choque.”

Cresceu a ouvir Mandela, e as suas palavras tinham eco. “Ele é como um avô para mim”, diz. Sithembiso Soyaya jogava à bola na planície ao lado da casa de Mandela. Lembra-se de se sentar junto ao muro a ver os carros passar, apontando com o dedo qual seria o seu. “Um dia, terei um igual a este.” Hoje tem um carro bom, um emprego seguro como gestor de comunicação de uma grande empresa em Port Elizabeth, depois de ter concluído uma licenciatura na Universidade da Cidade do Cabo. Sentiu-se tentado a seguir para Joanesburgo, onde estão os melhores empregos, mas fica na província do Cabo Oriental, que o viu crescer. E não é o único. “Mandela ensinou-me o valor do amor pelo nosso povo. Eu senti que devia contribuir para a minha terra. E fiquei.”

A palavra de Mandela moldou também a sua visão: “Ele ensinou-me a acreditar que tudo era possível desde que eu quisesse. Ele dizia às crianças: ‘Vão para a escola e fiquem na escola’. Ele ensinou-me a valorizar o estudo, a escola e a possibilidade de concretizar os meus sonhos.” 

Ao lado do museu de Qunu, está o que resta da cubata que era a primeira escola de Mandela: um espaço em círculo marcado no chão com fitas. “A escola ocupava numa única divisão. Tinha um telhado ao estilo ocidental, do outro lado da colina de Qunu”, conta Mandela na autobiografia “Um Longo Caminho para a Liberdade”. "Eu tinha sete anos e na véspera de começar, o meu pai chamou-me e disse-me que eu tinha de estar bem vestido para a escola. Até esse dia, eu – como todos os outros rapazes em Qunu – usava apenas um cobertor apoiado no ombro e pregado à cintura. O meu pai pegou num par de calças seu e cortou-as pelo joelho. No meu primeiro dia de escola, a professora, miss Mdingane deu a cada um de nós um nome inglês para usarmos na escola.”

Rolihlahla Mandela passou a usar o nome pelo qual ficou conhecido em todo o mundo. Um nome cristão: Nelson. 

Natal em Qunu

Mandela passava o Natal em Qunu. No dia 25 de Dezembro, sentava-se numa cadeira, dentro do seu quintal, e entregava presentes a todas as crianças. Gudiswa Soyaya era uma delas e lembra-se que se formava então uma fila de crianças chamadas das aldeias próximas para receberem surpresas, que, de outra forma, não receberiam, porque os pais não tinham dinheiro. “Ele ficava feliz de nos ver felizes”, diz Gudiswa Soyaya, que hoje tem 27 anos, e tinha oito quando soube quem ele era. “Ele veio à nossa escola. Nós cantámos para ele.” Mas era no Natal – todos os natais até ele ficar muito doente – que as crianças mais vibravam com a sua presença. “Aparecíamos com a nossa melhor roupa, e ele dava-nos um abraço, às vezes umas palavras e sempre um sorriso. Ele era como um avô para todas as crianças. É isso que sentimos, é isso que eu sinto. Se ele não tivesse existido eu não seria quem sou”, diz Unalo Khovana, que tinha dois anos quando Mandela foi eleito Presidente.

“A fila de crianças era tão grande que chegava lá longe”, diz Sithembiso Soyaya a apontar para uma estrada no horizonte. A mesma de onde viu chegar Nelson Mandela a primeira vez a Qunu, depois de ser libertado em Fevereiro de 1990.

“Ele desceu do helicóptero longe, para poder caminhar ao lado das pessoas, falar com elas. Eu lembro-me de correr para ele”, diz. Na altura tinha oito anos. A cena repetiu-se depois de cada vez que Mandela chegava de helicóptero. “Víamo-lo a chegar lá no céu, corríamos para o cumprimentarmos. Ele descia do helicóptero, sem guarda-costas, e sempre com aquele ar afável e bem-humorado que ele tem. Sempre que podia, conversava connosco.”

“À luz de velas”

Um sentimento de perda percorre a África do Sul, mas não há sentimento de orfandade comparável àquele que é vivido em Qunu. “Agora que ele partiu, quem vai olhar por nós?”, questiona-se Gudiswa Soyaya. Antes de Mandela ser eleito primeiro Presidente de uma África do Sul livre em 1994, Qunu não tinha electricidade. “Vivíamos à luz das velas.”

A sua presença reconfortava Qunu. E Qunu devolvia-lhe esse sentimento, quando a sua vida, aos poucos, se extinguia. Nos últimos ano, a bandeira da sua casa ficava hasteada, durante as longas temporadas em que não esteve internado no hospital em Pretória. A bandeira içada era uma forma de dizer que estava aqui, num regresso às origens que o próprio procurava. Quando estava bem, saía de casa, caminhava, era visto por toda a gente em Qunu, um conjunto de uma ou duas centenas de casas.

As casas têm espaçosos quintais onde as famílias enterram os seus familiares. O desejo de Mandela foi ser enterrado ao lado da mãe e dos filhos, no quintal da sua casa em Qunu. Este ano, o neto Mandla Mandela exumou e deslocou os corpos destes defuntos, numa tentativa de conseguir organizar o enterro do avô, já muito doente, na terra onde é chefe tradicional, Mvezo, e onde Nelson Mandela nasceu. “Eu nem queria acreditar”, diz Sithembiso Soyaya. Agora, neste momento de “profundo desgosto”, quer distanciar-se de tudo o que é dito nos jornais. “Quero apenas meditar sozinho, estar aqui, focar-me nele.”

Como as cerimónias fúnebres tradicionais, também os rituais de iniciação unem os vários clãs ou tribos da grande família xhosa. “Na cerimónia, quando o animal é sacrificado tem de sofrer e chorar, em sinal de que a criança é membro genuíno da grande família do clã”, explica Sithembiso Soyaya. Com 32 anos, já é o chefe da família, porque o pai morreu, não tem tios e os irmãos são todos mais novos. Será ele a presidir, na próxima semana, à cerimónia que encerra um mês preparação do sobrinho. “Ele vai ser um homem.” Foi ele que presidiu à cerimónia do filho de oito anos. Como o pai de Mandela fez com o filho.

Madiba será Madiba

“Os rituais de iniciação são uma forma de apresentar a criança aos antepassados”, explica. Da mesma forma, num funeral xhosa tradicional, o morto carrega o nome do clã para sempre. Madiba será Madiba para sempre. 
Quando o caixão chegou este sábado a Qunu, foi entregue aos chefes máximos do Congresso Nacional Africano (ANC), que trocaram a bandeira nacional pela bandeira do partido, e só depois à família. Mais tarde, a urna recebeu uma pele de leopardo e outra de leão – em sinal de que Mandela é um chefe mas também um rei. Mandela era cristão e, neste domingo, um padre preside à cerimónia, que só em parte será privada.

No sábado, jovens e pessoas de todas as idades saíram à rua no sábado. Não puderam despedir-se de Mandela como gostariam, com uma breve homenagem junto do caixão. Mas viram-no passar, como Lindi Zofuka que nunca pensou que este dia podia chegar. Até aqui, tinha Madiba. Agora, espera que Deus salve o país. “O espírito de Madiba fica connosco. Ele fica, para sempre, nos nossos corações. Espero que Deus nos ajude a continuar o que ele deixou para nós. O seu legado é tudo para nós.”
 
 
 
 

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