Instituições de caridade nos EUA usaram milhões em donativos para proveito pessoal

Directores de quatro instituições de apoio a doentes com cancro processados por gastarem o dinheiro em “cruzeiros luxuosos” e “viagens à Disney World”. Menos de 3% dos donativos recebidos foi usado no “alívio do sofrimento dos pacientes”.

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Um autêntico “negócio de família” foi posto a descoberto pelas autoridades norte-americanas Enric Vives-Rubio (arquivo)

A Comissão de Comércio Federal dos Estados Unidos (FTC) denunciou, nesta terça-feira, através de um processo instaurado a quatro instituições de angariação de fundos para o apoio a pessoas com cancro, um complexo esquema de utilização indevida de donativos. O “negócio de família” envolve directores e funcionários das instituições. Cerca de 170 milhões de euros destinados à “compra de medicação” e “subsídios para o transporte para sessões de quimioterapia” terão sido gastos pelos representantes das organizações de caridade e seus familiares para seu proveito pessoal.

Para além da FTC, também o distrito de Columbia e os 50 estados federados do país estão envolvidos na acusação contra a Cancer Fund of America, a Cancer Support Services, a Children’s Cancer Fund of America e a Breast Cancer Society, todas elas legalmente isentas do pagamento de impostos, por terem o estatuto de organizações sem fins lucrativos, dada a natureza do seu objecto profissional, a ajuda e apoio a doentes com cancro.

A acusação rotulou o esquema de “negócio de família”, uma vez que existe uma ligação familiar entre os directores das quatro instituições. James Reynolds Sr. é o presidente e fundador da Cancer Fund of America, e terá liderado o esquema, enquanto o seu filho, James Reynolds Jr., é o director executivo da Breast Cancer Society, tendo “aprendido, desde os 16 anos, o negócio do cancro, através do seu pai”, acusa a FTC. Já a ex-mulher de Reynolds, Rose Perkins, é desde 2005 directora da Children’s Cancer Fund of America. Todos os restantes membros das diferentes direcções das instituições eram “escolhidos a dedo pela família Reynolds”, segundo o Los Angeles Times.

Calcula-se que apenas 3% de todos os bens angariados, entre 2008 e 2012, terá sido efectivamente gasto em apoio aos pacientes com cancro. A maior parte dos 170 milhões de euros foi gasto no pagamento de salários e bónus aleatórios aos funcionários das organizações, que ainda recebiam 90 cêntimos (0,80 euros) por cada dólar que angariavam para “o alívio do sofrimento dos pacientes”.

Foram também financiadas através do dinheiro recolhido, segundo a acusação, duas viagens à Disney World, para “formação dos membros da direcção”. Para além disso, o dinheiro foi usado para “pagar a universidade da nora de Perkins”, as suas “quotas de ginásio”, “passeios de jet-ski", "viagens em cruzeiros luxuosos" e “compras na Victoria’s Secret”. O dinheiro que sobrava era distribuído por mais de 20 familiares e amigos chegados dos Reynolds.

Números não batiam certo
A acusação apresentou em detalhe os números em causa e informou que, em 2010, enquanto a Breast Cancer Society apresentava um declínio no número de dólares angariados, Reynolds Jr. teve um aumento de perto de 100 mil euros no seu salário.

Em 2012, a organização liderada por Rose Perkins só disponibilizou 0,71% do total de donativos recebidos. A directora recebeu perto de 210 mil euros nesse ano e tinha mesmo o poder de estabelecer o seu próprio salário, sem necessitar da aprovação dos restantes membros da direcção. Para estes, vigorava um aumento de 10% ao ano nos seus respectivos salários.

Também nas despesas reportadas os números não batiam certo. Para todos os bens, descritos pela acusação como “artigos aleatórios”, que eram efectivamente disponibilizados aos pacientes que padeciam de cancro, como “sabonetes e frascos de champô”, “almofadas” ou “capas de iPod”, as quatro instituições tinham descontos entre 2% e 5%, junto dos retalhistas. A Cancer Fund of America chegou a reportar mais de dois milhões de euros de despesas na compra destes produtos, adquiridos na realidade por menos de 300 mil euros.

Rose Perkins e James Reynolds Jr. já chegaram a acordo com a acusação para a extinção das suas instituições e para o pagamento de cerca de 60 e 30 milhões de euros, respectivamente, relativos às despesas relacionadas com o processo judicial. Kyle Effler, presidente da Cancer Support Services, chegou a acordo para o pagamento de 37 milhões de euros.

Reynolds Jr. publicou um comunicado no site da Breast Cancer Society, pouco antes de o mesmo ter sido desactivado, segundo o LA Times, informando que as organizações de caridade “estavam a ser alvo de escrutínio por parte governo” dos Estados Unidos e, como tal, a “Breast Cancer Society não era excepção”. Assim sendo, embora a sua “organização, os funcionários e os directores não tenham sido declarados culpados” das acusações que lhes são apontadas, “a direcção decidiu que entrar numa batalha legal, altamente publicitada e dispendiosa, sobre as práticas de angariação” da instituição “não iria ajudar aqueles que permanecem em necessidade”, tendo decidido cooperar com a justiça.

James Reynolds Sr., que terá idealizado o esquema, ainda não chegou a um acordo e promete contribuir para que este caso se arraste no tribunal federal norte-americano.

Texto editado por Tiago Luz Pedro

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