Rajoy acusado de querer acabar com a jurisdição universal para agradar à China e aos EUA

Em nome da justiça universal, os magistrados abriram inquéritos aos crimes das ditaduras da América Latina. Rajoy acusado de se dobrar a Pequim.

Foto
Mariano Rajoy acusado pela oposição de ceder à China BRU GARCIA/AFP

No calendário dos magistrados da Audiência Nacional (o principal tribunal espanhol e o único que pode agir ao abrigo da jurisdição universal) estão dois inquéritos, um contra dirigentes do Partido Comunista Chinês, entre eles o antigo Presidente Jiang Zemin, por crime de genocídio cometido no Tibete, e outro contra o Governo dos EUA por tortura na prisão de Guantánamo, onde estão detidos terroristas e suspeitos de terrorismo.

Em Novembro do ano passado, e depois de a Audiência Nacional ter emitido mandados de captura contra Jiang e outros dirigentes comunistas, a China protestou junto do Governo dirigido por Mariano Rajoy (Partido Popular, direita). “As autoridades espanholas devem levar a sério as inquetações chinesas e não devem agir de forma a prejudicar as relações entre a China e Espanha”, disse na altura o ministro dos Negócios Estrangeiros chinês. A iniciativa dos populares de vedar a aplicação da jurisdição universal aos magistrados da Audiência Nacional surge dois meses depois desta advertência.
“É uma infâmia. O Governo fulmina a jurisdição universal por pura conveniência”, disse um juiz ouvido pelo jornal espanhol El País.

No campo político, a iniciativa foi contestada por toda a oposição, que exigiu a presença do Governo no Congresso de Deputados para explicações. Irene Lozano, deputada da UPyD (União, Progresso e Democracia), acusou Rajoy de “ultrapassar a legitimidade democrática”.

A jurisdição universal é um princípio de direito público que permite a um Estado ter jurisdição penal sobre crimes cometidos fora do seu território quando existe o fundamento de que o crime foi cometido contra todos — acções que lesem a humanidade. Sustentando-se nela, o juiz espanhol Baltazar Garzon emitiu, em 1998, um mandado de captura contra o ditador chileno Augusto Pinochet. A Audiência Nacional abriu inquéritos aos crimes das ditaduras argentina e chilena, e a crimes cometidos no Sara Ocidental, em El Salvador ou na Guatemala.

Outros juízes, críticos da actuação dos magistrados da Audiência Nacional, disseram aos media espanhóis que têm sido cometidos abusos em nome da jurisdição universal, ou que não se tem em conta os interesses nacionais.

Em 2009, quando Israel protestou pela abertura de uma investigação aos bombardeamentos de 2002 contra Gaza, o chefe do Governo da altura, o socialista José Luis Zapatero, criou limites à actuação dos juízes ao abrigo da jurisdição universal — os socialistas (que tinham maioria no Parlamento, como agora o PP) aprovaram uma emenda na lei determinando que para se abrir um inquérito teria de haver pelo menos uma vítima espanhola; no caso do Tibete, foi identificado um homem naturalizado espanhol.

Mas os magistrados prosseguiram o trabalho nos casos que já estavam em curso sobre genocídios, desaparecimentos e outros actos que lesam a humanidade. Alguns deles: processo contra militares salvadorenhos pelo assassínio, em 1989, de monges jesuítas espanhóis; contra dirigentes políticos da Guatemala pelo genocídio e tortura contra a população indígena maia; contra dirigentes do Ruanda (o massacre dos hutus contra os tutsis); contra Marrocos pelos crimes cometidos contra a população do Sara Ocidental.

Rajoy quer ir bem mais longe e se o projecto de lei que propõe for aprovado, dizem os magistrados ouvidos pelo El País e Le Monde, muitos dos processso serão anulados. Só escapam do arquivamento as investigações em que o autor ou a vítima sejam de nacionalidade espanhola, ou aqueles em que a acção se dirija contra um estrangeiro residente em Espanha. Nos casos de genocídio, lesa-humanidade ou desaparecimentos, os magistrados da Audiência Nacional podem actuar contra cidadãos estrangeiros que se encontrem em Espanha. Mas para darem início a uma investigação internacional é preciso uma queixa, o que não era necessário até agora. Podem exercer a jurisdição universal quando os Estados onde sucederam os crimes não possam ou não queiram investigar, mas será outra instância, o Supremo Tribunal, a decidir quando avançar. 
 

Sugerir correcção
Comentar