Gaza e a condição humana

O meu Pai, que viveu uma época de profundas e rápidas mudanças, dizia sempre que tudo mudava, o que não mudava nunca era a condição humana.

De cada vez que vejo filmes sobre o Holocausto, penso que a humanidade tem mais uma dívida para com a Comunidade Judaica, pela denúncia, crua e persistente, desse crime infame.

Quando vejo as imagens dos judeus a serem expropriados dos seus mesteres, arrancados de casa, arrumados em filas como carneiros, empilhados como gado nas carruagens, separados dos seus mais próximos, despersonalizados e despidos da sua individualidade, amputados de qualquer vestígio de dignidade humana, tratados como objectos inertes e descartáveis. Quando vejo a sua incapacidade de resposta perante o poder dos seus algozes assente na mera superioridade da força sem limites. Quando os vejo humilhados como seres inferiores, tratados como lixo. A expressão de medo infinito em uma ou outra tentativa de arrancar um pedaço de pão ou um instante humano de vida, como ratos a roubar comida. Quando vejo sua impotência nua perante a destruição das últimas esperanças face à fria e crua soberba dos seus carrascos, sinto-me devastado, humilhado, conspurcado, traído. Sinto a humanidade, minha e de todos os seres humanos, devassada. Sinto vergonha. Sinto a ausência de qualquer referência, imanente ou externa ao ser humano. O vazio total. Uma revolta tão forte que hesitei em escrever este artigo por temer não conseguir transmitir a indignação e a revolta física que me causa este repugnante crime. Apenas serve de parca contrapartida a retenção da superioridade humana das vítimas face aos seus verdugos. E a consolação da denúncia desta infâmia, para que, doravante todas as gerações saibam até onde pode descer o horror da alma humana e para que, na única possível manifestação de consideração pelo sofrimento das vítimas, crimes destes nunca mais se repitam.

Nos últimos dias, as televisões têm-nos trazido as imagens dos bombardeamentos em Gaza. Quando vejo as expressões de medo e desespero das vítimas, a expressão vazia da sua impotência face à soberba da superioridade bélica que lhes destrói as casas e lhes mata os filhos, os parentes, os amigos. Quando vejo as justificações por esses actos baseada na força nua e crua e na pretensa superioridade dos seus direitos face aos dos adversários. Quando vejo punir conscientemente inocentes pelos crimes que se sabe serem de outros. Quando vejo a desvalorização da vida do próximo como menos valiosa que a nossa, sinto vergonha. Sinto, como perante a repulsa do holocausto, a ausência de quaisquer valores, humanos ou divinos, um vazio férreo, uma agonia física. Sinto também aqui a humanidade devassada. E, em consequência, o temor que a denúncia do Holocausto não tenha atingido os seus mais nobres fins.

Estou consciente que a origem destes dois tipos de violência é diferente, bem como das responsabilidades repartidas das suas frequentes eclosões. Não está em causa o direito de Israel se defender e garantir a segurança dos seus cidadãos. Nem a condenação da pusilanimidade do terrorismo, de movimentos ilegais ou de Estado, e não esqueço as circunstâncias do conflito do Médio Oriente.

Mas o olhar acossado e o medo estampado no olhar das vítimas, a expressão de desespero e impotência nos seus gestos deixam-me, no plano humano, uma impressão paralela, a mesma desesperada frustração perante o uso da força como argumento e a pretensão da superioridade de uns perante os outros.

O meu Pai, que viveu uma época de profundas e rápidas mudanças, dizia sempre que tudo mudava, o que não mudava nunca era a condição humana. Eu tenho poucas, pouquíssimas certezas. Essa é seguramente uma delas.

Embaixador reformado 

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