Direitos reais no mundo virtual

A Europa quer ser um pouco melhor...

É profundamente chocante para qualquer pessoa com um mínimo de sensibilidade o rapto das crianças nigerianas por um grupo radical islâmico. O seu crime foi estudarem e o seu fim será a escravatura e o casamento forçado. Em nome de Deus.

Choca igualmente qualquer pessoa com um mínimo de sensibilidade as últimas declarações do general egípcio que pôs termo a um processo democrático, prendendo e fazendo condenar à morte o primeiro Presidente civil do Egipto e centenas dos seus seguidores. Segundo afirmou, sem contabilizar o número de mortos necessários para o efeito, vai acabar com o movimento Irmandade Islâmica. Não sendo em nome de Deus, será em nome do Diabo que o fará.

Face a estes dois exemplos actuais da bestialidade humana, o Guia dos Direitos Humanos para os Utilizadores da Internet, aprovado na semana passada, pelos 47 Estados-membros do Conselho da Europa, é um luxo civilizacional. E, no entanto, pode ser uma ferramenta útil para todos aqueles que na Europa se vão defrontando com mil e uma violações dos seus direitos no mundo virtual.

 A ideia foi criar um instrumento que permita aos cidadãos conhecerem os seus direitos e a forma de os exercer na Internet, ao mesmo tempo que se apontam as obrigações mínimas dos Estados do Conselho da Europa neste domínio e se promove por parte das empresas que operam no mundo virtual um comportamento responsável e respeitador dos direitos humanos dos cidadãos.

O guia aprovado – http://www.coe.int/web/internet-users-rights/guide – não cria novos direitos humanos e evita pronunciar-se sobre uma questão que, com o tempo, se vai tornando fulcral: existe um direito fundamental a ter acesso à Internet? Devem os Estados assegurar aos seus cidadãos a possibilidade de comunicarem e serem comunicados virtualmente? E podem impedi-los de o fazer? Quando e como?

Estas questões – em sociedades democráticas – provocam animados debates. A decisão judicial historicamente mais relevante nesta matéria foi um acórdão do Conselho Constitucional francês, proferido em 10 de Junho de 2009, que considerou inconstitucionais diversas disposições de uma lei do Governo Sarkozy que pretendia que uma qualquer alta autoridade administrativa tivesse poderes para barrar o acesso à Internet de cidadãos que tivessem efectuado anteriormente descargas ilegais, nomeadamente de músicas e filmes. O Conselho Constitucional considerou que uma restrição tão grande na liberdade de expressão e de comunicação não podia ser confiada a uma autoridade administrativa, já que cabe aos tribunais ponderar os diversos direitos fundamentais em confronto e tomar decisões proporcionadas. Por outro lado, a lei previa que caberia ao cidadão notificado das descargas ilegais no seu computador fazer prova de que tais descargas não haviam sido efectuadas por si, o que, no entender do Conselho Constitucional, constituía, também, uma inaceitável violação do princípio da presunção da inocência. Uma decisão muito saudável e que veio sublinhar que no mundo virtual os direitos fundamentais continuam a existir.

E o Guia dos Direitos Humanos para os Utilizadores da Internet, agora aprovado, vem exactamente definir a aplicação desses direitos, que já se encontram consagrados em diversos diplomas internacionais, como é o caso da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, à Internet. O guia está organizado em sete grandes grupos: acesso e não discriminação, liberdade de expressão e informação, reunião, associação e participação, privacidade e protecção de dados, educação e literacia, crianças e jovens e recursos eficazes.

Um exemplo: sob a epígrafe “Acesso e não-discriminação”, o Guia (em tradução livre) começa por afirmar: “O acesso à Internet é um importante meio para exerceres os teus direitos e liberdades e para participar na democracia. Daí não deveres ser desligado da Internet contra a tua vontade, excepto em consequência de uma decisão judicial. Em certos casos, questões contratuais também podem levar à descontinuação do serviço, mas essa medida deve ser um último recurso.” E continua o Guia: “O teu acesso deve ser suportável economicamente e não discriminatório...”

Claro que o Guia, não sendo uma lei ou um diploma de valor semelhante, não é aplicável judicialmente, em termos de obrigar os Estados a respeitá-lo de forma efectiva. Mas servirá seguramente para, por exemplo, na Turquia, que o aprovou, servir de bandeira política e ética a todos aqueles que se vêem privados do acesso, ora ao YouTube ora ao Tweeter. Servirá, também, para disseminar a consciência da existência de direitos humanos, não só no mundo real como no mundo virtual, que se sobrepõem à vontade e conveniências dos Estados.

O Guia constitui, assim, uma louvável cartilha dos direitos humanos, que se pretende que sejam o mais reais possível no mundo virtual.

Advogado

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