Cuidado com as normalizações

A mim assusta-me que, em jornais ocidentais, se comece a associar Putin a Hitler.

“Bei der Laterne wollen wir steh'n
Wie einst Lili Marleen.”

É notícia: a Alemanha vai permitir a reedição de Mein Kampf. Sorrisos anti-germânicos já se soerguem, as piadas afiam-se e nem precisam de ter piada. A associação que volta e meia vociferantes levianos fazem (alemães = nazis) mais de uma vez irrita o meu amigo Alex, e com razão. É um insulto: ninguém é responsável pelos crimes dos pais, neste caso dos avós e bisavós, muito menos pelos dos seus dirigentes, mesmo que democraticamente eleitos. Ainda hoje é árdua a questão de se saber quem foi cúmplice, quem simplesmente foi poltrão, quem… O facto de desertores e resistentes terem levado tempo de mais a serem reabilitados (com Aristides Sousa-Mendes aconteceu o mesmo) não ajuda nada. A Alemanha de hoje é uma democracia vibrante e, ao longo de décadas, talvez o melhor bastião europeu contra o nazismo. Porque, havendo uma “culpa colectiva”, ela funcionou como alerta máximo contra o retorno da Besta, ao contrário de países limítrofes que aproveitaram o monopólio da culpa alemã para sacudirem a água do capote e, pior, não fazerem a devida higiene à consciência colectiva. As férreas leis contra o anti-semitismo na Alemanha foram instrumentos importantes, e a sociedade pós-45 é generosamente “multikulti”, de uma forma que a um português, mesmo com as heranças do nosso “vasto império”, é difícil perceber.

Há aquela famosa frase, atribuída a Kissinger mas podia ser a Picasso ou Einstein que ia a dar no mesmo, de que “o drama da Alemanha é ser demasiado grande para a Europa e demasiado pequena para o mundo”. É uma boutade, com o seu quê de certeiro, como as melhores boutades. A pujança económica, científica e tecnológica alemã é notável, e é sensato sentirmos inveja. Eu sinto. Por outro lado não é inteiramente inocente. À reunificação alemã seguiu-se, não vou dizer que com causa-efeito mas alguma coisa terá a ver, a desagregação jugoslava. E algum dedo lili marlénico, e não apenas lili putiano, haverá na crise ucraniana. A mim as desmesuradas promessas de ouro, mirra e incenso feitas à Ucrânia (sobretudo em época de ferro para a UE do sul) lembram-me os tempos em que Berlim era um farol de liberdade, sobretudo para mostrar ao leste que “Ocidente é bom”.

O meu amigo Luís é metalúrgico numa fábrica alemã onde os operários são “multikulti”, ou seja, tudo menos alemães,  e diz a brincar que “os alemães não sabem perder nem sabem ganhar”: se perdem ficam logo “choramingas a achar que são os piores”; ou então todos cheios de si a jurar que são (sempre foram e sempre serão) “os maiores”. Na minha ingenuidade, eu pensava que esse era um mal português, mas não, é um mal alemão. Não saber perder nem saber ganhar. Lembro-me da capa do Bild quando Ratzinger foi eleito: “Somos Papas!” Por detrás do humor, havia a noção evidente de que se tinha logrado uma merecidíssima, inevitável mesmo, vitória colectiva. Agora poderia haver manchetes tipo: “Somos Muti!” (Somos Mamã, o petit nom da chanceler) ou “Somos os Maiores” ou “Só nós trabalhamos”. Ou “A Grécia que venda umas ilhas”. 

É bom que Mein Kampf volte a ser editado passados 70 anos, na língua em que foi escrito. É um sinal de normalização. Quem sabe alemão pode enfim ver se a tradução era fiel ao original. Convém apenas que o país onde o impossível aconteceu esteja atento às velocidades da normalização, agora que os últimos sobreviventes (vítimas e algozes) estão a desaparecer. A mim assusta-me que, em jornais ocidentais, se comece a associar Putin a Hitler, e a dizer (já vem de há uns anos) que “no fundo Estaline foi pior que Hitler”. Não foi. Foi um monstro, mas Hitler e o nazismo e a Alemanha do nazismo foram um monstro piorzito. Essa reescrita do passado – esquecer que Auschwitz foi libertado por soviéticos, por exemplo – é perigosa. A Alemanha de hoje é um país que nos causa admiração, inveja, alguma irritação, grande amizade. A construção paulatina de uma Amnésia do Vencedor seria uma grande chatice.

Docente universitário FCSH-UNL

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