A libanesa Jabbour faz o que pode pelas vítimas da tortura, e isso é muito

Começou por ser uma missão para os libaneses, presos, torturados pelos vizinhos, ocupados pela Síria de Assad. Hoje, a maioria dos que a Restart ajuda são sírios em fuga da guerra.

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“A questão não é o prémio, é a atenção ao nosso trabalho", diz Jabbour Daniel Rocha

Suzanne Jabbour é uma psicóloga de 54 anos, libanesa, que decidiu dedicar a vida às vítimas da tortura. A todas as que puder apanhar. Ela que sofre com elas e a ser tocada por elas, todos os dias. “Basta saber ouvir, deixarmo-nos tocar, eu acredito que estas histórias tocam a todos, todos os que estejam disponíveis para se deixarem tocar”, diz Jabbour numa conversa em Lisboa, onde veio receber o Prémio do Centro Norte-Sul do Conselho da Europa.

“Este prémio conta. Ainda que eu tenha uma longa história de trabalho junto das vítimas da tortura, esse trabalho foi feito sobretudo no meu país e nos países à volta. Com esta distinção, esse trabalho é reconhecido pela Europa. E isso tem valor”, diz Jabbour, voz baixa, gestos contidos, cada palavra em francês pesada e pensada, mas dita, ainda sim, como num grito suave.

“Depois de 18 anos a trabalhar em circunstâncias muitos difíceis, com desafios e dificuldades diárias, ninguém tinha verdadeiramente prestado atenção a esse esforço”, admite. “A questão não é o prémio, é a atenção ao nosso trabalho. E ao problema, à situação. Este é um trabalho de grupo, na Restart há uma equipa, em todo o lado, como sempre, é preciso alguém para gerir, liderar, ser o rosto. Mas o esforço é sempre de grupo, de muita gente que merece este prémio.”

Jabbour fundou a Restart – Centro para a Reabilitação de Vítimas de Violência e Tortura, com sede em Beirute, em 1996, mas a associação que teve de criar como empresa privada só conseguiu ser organização não-governamental há quatro anos. Imagine-se. Não é difícil perceber o porquê. Afinal, a tortura, as vítimas da tortura, todas estas palavras simples e curtas até, enervam a autoridade. Afinal, a tortura, aqui e ali, é quase sempre também cometida com a cumplicidade dos estados, isto quando não são os próprios estados a ordenar que seja cometida.

“O que realmente me permitiu ganhar este prémio são as pessoas que trabalham comigo e aquelas para quem trabalhamos, as vítimas da tortura, os prisioneiros, os mais vulneráveis. Falamos destas pessoas e muita gente nos pergunta, ‘o que pode ser feito’? Pela minha experiência, podemos fazer muito pelas vítimas da tortura, pelos prisioneiros, refugiados. Baste que não nos calemos. Damos muita esperança a muitas vítimas”, descreve Jabbour.

Para os que se entregam, este é um trabalho feito com dificuldades extremas, de todo o tipo. “É uma missão difícil, na nossa sociedade, em todas, não é só apoio financeiro, é um apoio moral que ultrapassa o momento da ajuda, dos instantes em que prestamos a ajuda mais básica, urgente. Depois, elas continuam a precisar, sempre. E a nossa relação continua. Falamos de pessoas que precisam de ajuda para toda a vida, há quem consiga recomeçar, mas é duro. É uma experiência muito dura para um ser humano.”

No início, muitas vítimas eram vítimas da ocupação síria do Líbano e da guerra civil, fratricida, que durou de 1975 a 1990. Agora, a maioria das vítimas que a Restart apoia são “refugiados sírios, traumatizados pela guerra, vítimas da tortura, crianças que foram torturadas…, é verdadeiramente duro e é muito triste, não sabemos se estas pessoas terão um futuro”.

Agora, o que mais aflige Jabbour não é o futuro do Líbano mas o futuro da Síria. Do tal país cujo Estado ocupou o seu durante 29 anos, até 2005. São mais de “150 mil mortos, quase 3 milhões de refugiados no exterior… seis milhões no interior, não sabemos como é que a Síria vai continuar a existir”.

Mas o Líbano ainda sangra, pelos novos sírios, mais de um milhão que atravessou a fronteira, pelos velhos libaneses, os que sobreviveram e os que desapareceram. “O meu país sofreu muito, a guerra civil, os diferentes grupos praticaram a tortura, o Estado torturou, a ocupação da Síria. Até hoje, há pessoas desparecidas e ninguém tem nenhuma informação. Seres humanos sobre os quais nada sabemos.”

Quando a Restart foi fundada, por Jabbour e amigos seus, psicólogos, “na altura da presença de grupos militares sírios”, nem sequer pôde ser uma associação ou trabalhar legalmente. “Até 2005, trabalhámos sem nenhum papel. Em 2005, constituímos uma empresa sem fins lucrativos, não pudemos ser ONG, criámos um centro privado sem fins lucrativos. Só em 2010 conseguimos o estatuto de ONG. Todos os governos têm medo dos activistas dos direitos humanos, pelo menos na minha região”, explica.

Reabilitar, sempre
Cada ONG tem o seu papel, o papel da Restart é fazer prevenção, estar presente, mas o verdadeiro objectivo é reabilitar. “A reabilitação, como a entendemos, é um conceito alargado, holístico. Vemos a vítima como um todo, oferecemos apoio material, psicológico, familiar, a todos os níveis.”

O financiamento vem da ONU (Alto Comissariado para os Refugiados, Fundo Especial das Nações Unidas para as Vítimas da Tortura) e da UE (Comissão Europeia), nunca do Governo – “Não temos dinheiro que chegue mas não podemos aceitar fundos do Governo, pela segurança dos nossos beneficiários, pelas vítimas e por nós mesmos, na Restart”.

Agora, o que mais preocupa Jabbour é mesmo o futuro da Síria e dos sírios. Centenas de milhares, milhões de crianças “fora do sistema ao educativo”, traumatizadas pela guerra, torturados, até. “Como é que este país pode ter futuro assim? Não é possível.”

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