A Grécia e as indemnizações da II Guerra Mundial

1. A 8 de Maio, para os países ocidentais, ou 9 de Maio, para a Rússia, cumpriram-se 70 anos após o final da II Guerra Mundial (1939-1945) em solo europeu. Sendo um passado cada vez mais distante, as memórias da guerra continuam a fazer sentir o seu peso e a ensombrar o presente, especialmente no leste europeu (Polónia, Estados Bálticos, Ucrânia e Rússia) e na Ásia-Pacífico (China, o Japão e a Coreia).

Na Europa, a Grécia foi uma das muitas vítimas da invasão e ocupação pela Alemanha nazi, ocorrida após uma mal sucedida tentativa do aliado de Hitler, a Itália fascista de Mussolini. Entre 1941 e 1944 esteve sob ocupação militar alemã (Creta e ilhas do mar Egeu até ao final da guerra). As mortes resultantes da invasão e ocupação nazi, a grande maioria civis, provocadas sobretudo pelas más condições de saúde e alimentares, terão sido entre 250.000 a 400.000, consoante as estimativas. A seguir ao leste europeu, os Balcãs foram provavelmente a área onde a brutalidade da guerra mais se fez sentir na Europa.

2. No contexto da profunda crise financeira, económica, social e política que afecta a Grécia há vários anos, em 2013, o anterior governo grego liderado por Antonis Samaras da Nova Democracia, em coligação com o PASOK, reavivou a questão das reparações da II Guerra Mundial. Na altura, fê-lo de forma relativamente discreta e sem formular um pedido de indemnização oficial dirigido à Alemanha. A comissão encarregada do assunto procedeu a um trabalho de recolha de documentos da época, abrangendo os danos que o país sofreu devido à invasão e ocupação, na sua população, recursos e infraestruturas. Um caso específico incluído nesse levantamento foi o do empréstimo forçado feito pelo Banco da Grécia, para financiar o esforço de guerra da Alemanha nazi. O valor total das reparações devidas pela Alemanha foi calculado em cerca de 162 mil milhões de euros. 108 mil milhões a título de compensação pelos danos da invasão e ocupação e 54 mil milhões relativos ao empréstimo que o Banco da Grécia foi forçado a efetuar na época. (Spiegel Online International, 8/04/2013).

3. Com a chegada ao poder do Syriza em coligação com o ANEL/Gregos Independentes, em finais de Janeiro de 2015, a questão subiu um novo patamar. O primeiro-ministro Alexis Tsipras decidiu (re)lançar abertamente a questão das reparações de guerra. O  valor avançado agora é substancialmente superior ao que terá sido calculado pela comissão encarregada do assunto durante o governo de Antonis Samaras (162 mil milhões de euros). Em inícios de Abril de 2015, o governo grego afirmava oficialmente que a Alemanha devia cerca de 279 mil milhões de euros de indemnizações de guerra (BBC, 7/04/2015). Os cálculos deste valor terão sido baseados na seguinte contabilização de danos (não são mencionados os critérios usados para a quantificação pecuniária): 40.000 pessoas executadas; 300.000 mortes por fome; 210.000 reféns de trabalho forçado na Alemanha; 63.000 judeus gregos que foram vítimas do Holocausto; 1170 cidades e vilas destruídas; 401 mil casas demolidas; 1,2 milhões que ficaram sem habitação; 906 navios comerciais afundados; 129 pontes destruídas;  298,753 toneladas de metais preciosos explorados ou extorquidos; 1058 tesouros arqueológicos saqueados. (Guardian, 8/04/2015). Tais danos totalizariam 268,4 mil milhões de euros. A estes acrescem, ainda, 10,3 mil milhões do empréstimo forçado feito pelo Banco da Grécia, num total de 278,7 mil milhões de euros. A título de comparação, a total da dívida pública grega era, em Janeiro de 2015, na ordem dos 317 mil milhões de euros, representando 177% do seu PIB (Financial Times, “Size of Greece’s debt limits scope for solutions”, 13/01/2015). Ou seja, as indemnizações de guerra reclamadas pela Grécia à Alemanha pagariam cerca de 88% da sua dívida actual.

4. O assunto pode ser analisado em vários planos: legal, moral e político. Do ponto de vista legal, a análise é complexa. Implica ter em conta disposições de múltiplos documentos diplomáticos e tratados, que vão desde o final da II Guerra Mundial, em 1945, até à reunificação alemã, no ano de 1990: documentos relativos às Conferências de Ialta e de Potsdam, respectivamente em Fevereiro e Julho-Agosto 1945; Acta Final da Conferência de Paris sobre as Reparações de Novembro-Dezembro de 1945, a qual fixou as percentagens do valor de reparação de guerra a receber por cada país e criou também a Agência Inter-Aliada de Reparações; disposições do Plano Marshall (oficialmente European Recovery Program/Plano de Recuperação Europeia) de 1947 e as condições colocadas pelos EUA aos Estados europeus que dele beneficiaram; o Acordo de Londres sobre a dívida externa da Alemanha de 1953; o Acordo Bilateral entre a Alemanha  e a Grécia, com o pagamento de 115 milhões de marcos, a título de reparações; o Tratado sobre a Regulamentação Definitiva referente à Alemanha (vulgarmente conhecido como o Tratado Dois-Mais-Quatro), celebrado pelas duas Alemanhas da Guerra-Fria (RFA e RDA) e pelos Aliados que aí mantinham forças militares de ocupação desde 1945 (EUA, França, Reino Unido e ex-URSS), em Setembro de 1990. Só a análise destes documentos permitirá saber se, como sustenta a Alemanha, encerraram totalmente a questão das reparações. Se o assunto não estiver encerrado, como argumenta a Grécia, isso só por si não resolve o problema. Há a questão de saber qual o tipo de reparações ainda em aberto, ou a da sua quantificação monetária actual, como, por exemplo, no caso do empréstimo forçado do Banco da Grécia. Levantam-se assim diversos outros problemas, de maior ou menor dificuldade, que vão desde a determinação do critério a usar para chegar a um valor pecuniário dos danos, incluindo as perdas de vidas humanas, até às taxas de juro e de inflação a aplicar.

5. Faz sentido ligar o problema da dívida da Alemanha após a II Guerra Mundial ao problema da actual dívida externa grega e às negociações do seu financiamento? Esta é uma questão que inevitavelmente vem à mente. Há vários aspectos a considerar. O Acordo de Londres de 1953 continha de facto condições generosas para a Alemanha. Perdão de cerca de 50% da dívida, parte dela ainda da I Guerra Mundial, em condições bastante favoráveis de pagamento, incluindo prazos alargados e juros baixos, com um encargo anual de serviço da dívida não superando, na prática, 5% das receitas de exportação (ver Jürgen Kaiser, One Made it Out of the Debt Trap. Lessons from the London Debt Agreement of 1953 for Current Debt Crises, 2013). Naturalmente que pode ser útil discutir se o Acordo de Londres é um bom exemplo sobre aquilo que deveria ser aplicado à Grécia. Este facilitou, ou até possibilitou, o chamado “milagre económico alemão” dos anos 1950 e 1960. Não foram impostas à Alemanha  políticas de austeridade similares às actuais. Esta é uma lição histórica que o governo de Angela Merkel não deveria esquecer. Importa, no entanto, não perder de vista as circunstâncias muito particulares em que esse acordo foi feito. Tratou-se, como é típico na política internacional, de uma generosidade interessada. Estávamos nos anos 1950, em plena Guerra Fria, onde para os EUA, o principal credor da Alemanha na época, a grande prioridade era a política de containment da ex-União Soviética. A normalização das relações económicas e financeiras da Alemanha, foi, por isso, subordinada a interesses político-estratégicos. Por essa altura, em 1955, a Alemanha, ou seja, a ex-RFA, tornava-se membro da NATO. A recuperação económica e o rearmamento da Alemanha era um prioridade nessa estratégia. Para além disso, o país tinha uma enorme tradição industrial e exportadora anterior à guerra, a qual poderia ser reconstituída de forma relativamente rápida, gerando excedentes comerciais. Estes beneficiariam os próprios credores dos países Aliados no seu ressarcimento.

6. É necessário ainda reflectir sobre as consequências que a exigência grega das reparações de guerra à Alemanha poderão ter. Além da questão legal e do precedente que inevitavelmente abriria para outros casos, há o aspecto moral e político. Importa não perder de vista o passado. A Europa que se criou após a II Guerra Mundial, a Europa das Comunidades a qual está na origem da União Europeia, não foi a Europa do acerto de contas e da revanche da I Guerra Mundial. O que se pretendeu criar foi uma nova forma de relacionamento entre os povos europeus, superando as trágicas rivalidades e antagonismo nacionais de forma duradoura. Não uma paz que fosse apenas um interlúdio para mais uma guerra. Naturalmente que isso teve um preço. Para poder ser feito, foi necessário um enorme esforço dos vencedores e dos vencidos da II Guerra Mundial. Para os vencedores, a generosidade, ainda que interessada, de ajudar à reconstrução económica e reabilitação política e moral dos derrotados, abdicando de grande parte dos seus créditos e das reparações de guerra e criando organizações que cimentassem a confiança. Para os vencidos, recriar política e economicamente o seu país num quadro democrático, pacífico e de respeito pela dignidade humana, inserindo-se activamente nas organizações que refundaram a Europa e reconciliaram os europeus. Este foi o maior legado que as gerações do pós-guerra nos deixaram. Apesar do sofrimento do povo grego sob ocupação nazi, o seu governo que participou nos Acordos de Londres de 1953 fez parte desse esforço colectivo. A Grécia do pós-guerra foi um membro activo dos esforços reconstrução da Europa em novos moldes, desde o Plano Marshall de 1947 até à adesão às Comunidades em 1981. Impõe-se ao governo grego continuar esse legado. Setenta anos depois, reabrir as feridas da II Guerra Mundial com pedidos de reparações de guerra é abrir caminho ao regresso à Europa do Tratado de Versalhes de 1919.

 Investigador

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