Lisboa, não sejas francesa

Esta é uma crónica sobre um pedaço de Lisboa que há muito deixou de existir. Mas que, como outros, ficou, pelo menos de nome, na memória colectiva. Falo do Passeio Público, arrasado no final do século XIX para abrir caminho a uma avenida moderna, à francesa, a Avenida da Liberdade.

Subo a partir do Rossio, e, curiosamente, ao passar pela montra da geladaria A Veneziana, casa criada em 1933 por um italiano acabado de chegar a Lisboa, encontro um pequeno cartaz com a programação (já passada) da Semana da Avenida, organizada pelo Passeio Público, a associação de empresários da Avenida da Liberdade que se propõe “devolver o passeio público à cidade… tal como era”.

Mas como era, realmente, o Passeio Público? Nasceu por iniciativa do Marquês de Pombal após o terramoto de 1755, por se achar que os lisboetas precisavam de um espaço verde onde passear, e ocupava aproximadamente o espaço que hoje fica entre a zona delimitada pela Praça dos Restauradores por um lado e a Praça da Alegria e a Rua das Pretas pelo outro, sendo que para Norte o que existia eram hortas. É, portanto, até aí que vou subir a Avenida, tentando imaginar como seria.

Junto ao antigo cinema Éden há sem-abrigo a dormir debaixo de cobertores. Um deles, recostado, lê um livro. As gaivotas gritam em redor do monumento aos Restauradores como se estivéssemos à beira-rio, fazendo concorrência aos pombos. É o primeiro domingo do ano e há pouca gente por ali, o que torna mais difícil imaginar as animadas tardes e noites da “burguesia domingueira” do Passeio Público.

Quando foi criado, o Passeio Público, desenhado pelo arquitecto Reinaldo Manuel no terreno onde anteriormente existiam as Hortas de Mancebia e da Cera, era, conta Júlio Castilho na Lisboa Antiga, o único local onde os lisboetas podiam passear “livres de lama”. Rodeado por altos muros, com 15 janelas gradeadas, era uma espécie de refúgio verde, embora numa primeira fase (até 1936) fosse apenas, e ainda nas palavras de Castilho, um local de “ruas muito sombrias, banquetas de buxo simetricamente dispostas, pedestais com vasos e estátuas, em suma, um ar de quinta nobre que era uma delícia”. Mas era, nesta fase, e numa cidade em que havia ainda pouco hábito de sair à rua para frequentar jardins, um espaço pouco visitado.

O verdadeiro Passeio Público, esse que parece ter deixado alguma memória, só nasceria a partir de meados dos anos 30, com as obras de melhoramento. Surgiram então os portões de ferro e desapareceram as casas miseráveis encostadas aos muros. Estes foram substituídos por um gradeamento e o Passeio Público “tornou-se o ponto de reunião de toda a melhor sociedade da moda, um vasto salão ao ar livre”. No topo norte havia uma cascata e no lado sul um grande lago com um repuxo que, conta-se, levava os lisboetas a dizer “fui ao Passeio ver o repuxo, fiquei admirado de ver tanto luxo”.

Hoje, olhando as montras das lojas da Avenida, talvez também muitos digam “fiquei admirado de ver tanto luxo”, mas os repuxos nos dois lagos que ladeiam a antiga zona do Passeio Público não impressionam. E, no entanto, no meio do trânsito e do movimento da Avenida, ainda se ouve a água a correr, nesses lagos gémeos que herdaram do antigo Passeio as estátuas representando o rio Tejo e o rio Douro. Os lisboetas adoraram tamanho chique e o Passeio tornou-se local de festas, bailes, concertos de bandas e os muito apreciados fogos-de-artifício. A pouco e pouco, o povo, que inicialmente ficava fora do gradeamento, foi entrando e misturando-se com a burguesia.

Mas em 1879 Lisboa sonhava ser mais parisiense e o Passeio Público foi demolido para que se pudesse rasgar o grande boulevard, a Avenida da Liberdade. Por lá ficaram alguns pedaços de passado sem que pareça haver uma lógica a uni-los: a estátua de Pinheiro Chagas acompanhado pela sua Morgadinha de Valflor, Simon Bolívar em homenagem à independência sul-americana e, mais acima, Chopin.

Thomas Mann, em Confissões de Félix Krull, classificou a Avenida como “uma das mais magníficas artérias" que vira em toda a sua vida. Mas, quando ela foi aberta, Ramalho Ortigão, defensor de actividades mais “higiénicas”, anteviu, nas suas Farpas, os perigos que a ameaçavam: “O boulevard não serve senão para espalhar os maus hábitos do café e do trottoir, o amor da ostentação, a ociosidade, o boulevardismo, a cocotice, o luxo pelintra da toilette. Não, Lisboa, minha boa amiga, tu já tens demais os vícios de boulevardante!” Neste primeiro domingo de 2014, a Lisboa boulevardante, que até há poucos dias descia a Avenida de carro provocando engarrafamentos para ver as iluminações de Natal, parece, ainda assim, preferir o Chiado ao Passeio Público.

Nota: algumas das citações deste texto são do livro Lisboa: Histórias e Memórias, de Maria João Janeiro
 

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