Dos dias gloriosos do Barreiro velho ao abandono das casas e à tristeza dos que ficaram

Já foi um lugar cheio de vida e de gente. Ruas feitas de história e também de edifícios notáveis. Hoje é um espaço degradado e a caminho da ruína. Por enquanto não se vê futuro para o Barreiro velho.

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Prédios entaipados e a cair e casas habitadas por famílias carenciadas formam hoje o Barreiro velho Rui Gaudêncio

O núcleo histórico do Barreiro, uma antiga vila ligada aos Descobrimentos antes de ser e deixar de ser um importante pólo industrial, está a desaparecer a passos largos. A degradação desta parte da cidade, situada na zona ribeirinha, salta aos olhos. Estão ao abandono numerosos edifícios cujo valor arquitectónico passa pela art déco, pela riqueza da azulejaria, ou por fachadas e varandas que marcaram uma época.

No Barreiro velho não há serviços públicos, nem caixas multibanco. São ruas que se cruzam preenchidas por prédios entaipados, prédios a cair, casas habitadas por idosos tristes, sem recursos económicos e por famílias multiétnicas carenciadas. E há quem confesse, sem dizer o nome, “medo de andar de dia e de noite por algumas ruas”.

Há contrastes sociais e económicos evidentes: abriram nos últimos anos — apesar da crise — vários restaurantes e estabelecimentos de diversão nocturna. E alguns proprietários da zona consideram que a permissão de espaços de diversão nocturna pouco compatíveis com o uso residencial contribuiu decisivamente para reduzir a sua atractividade em relação a novos residentes e comerciantes.

A presidente da União das Freguesias de Barreiro e Lavradio, Ana Porfírio, mostra-se preocupada com os problemas sociais e de segurança que ali existem, aliados à degradação imobiliária. Defendendo a instalação de uma esquadra da PSP, como dissuasora de situações que perturbam a ordem pública, a autarca diz que a pobreza, o envelhecimento e outros problemas como o alcoolismo, a droga, e o desemprego “são o espelho do que se passa no país”. 

Apesar de preocupada, a autarca sublinha a existência de uma rede de sinalização de idosos abandonados, de cantinas sociais e de organizações como a NÓS e a colectividade “Os Franceses”. Lamentando a falta de meios técnicos e financeiros para uma resposta mais global, Ana Porfírio comenta que ali se trabalha “num trapézio sem rede”. E conclui: “É incontável o número de pessoas que batem à porta da junta”.

Até a farmácia fechou
Susete Pireza, aposentada, cresceu no Barreiro velho e recorda o que era o ambiente que ali se vivia até  meados dos anos 1970. “Havia as colectividades onde a malta se encontrava, no tempo do fascismo. Esta zona era saudável, podíamos deixar a porta aberta. Havia drogaria, sapataria, padaria”, havia tudo. 

Mas este comércio tradicional fechou as portas há muito tempo. Até a única farmácia da zona encerrou recentemente. A vida activa desviou-se da zona histórica e virou costas ao berço da vila, que em 1984 se tornou cidade.

Criado há nove anos, o Grupo de Amigos do Barreiro Velho (GABV), uma associação que nasceu da sociedade civil, tem alertado para o abandono da zona. Mas tem também procurado dinamizá-la através de actividades como o “Enterro do Bacalhau”, que organiza a seguir ao Carnaval. Uma tradição que remontará ao tempo dos camarros, os pescadores do Tejo que se fixaram em torno de uma ermida do séc. XVI, que mais tarde deu origem à Igreja de Nossa Senhora do Rosário.

Quanto ao estado actual do centro histórico, o GABV distribui responsabilidades pela câmara e pelos proprietários. A presidente da associação, Rosário Vaz, entende que desde há muito o Barreiro velho devia ter sido objecto das preocupações do poder local, “colocando-o nos objectivos e projectos de valorização da cidade”. 

Na opinião da dirigente associativa, o programa camarário Repara (Regeneração Programada da Área Ribeirinha de Alburrica), que tinha entre os seus objectivos a requalificação desta área, “não parece, por ora, ter motivado quaisquer alterações no estado de degradação da zona histórica”. 

Estas críticas são rejeitadas pelo vereador do Planeamento da Câmara do Barreiro. Rui Lopo garante que a autarquia definiu a zona antiga como área de reabilitação urbana, mas reconhece: “É evidente que a degradação daqueles espaços choca quem é do Barreiro, por razões emocionais, e perturba quem é observador”. 

Contudo, argumenta que a autarquia tem o campo de acção muito limitado, principalmente pela legislação que define as atribuições dos municípios. “Fazemos o que é possível fazer. As leis dificultam uma metodologia que podia ser mais coerciva e estamos a entrar num domínio todo ele dos privados”.

Responsabilidades repartidas
Por seu turno, a Associação de Proprietários do Barreiro responsabiliza a conjuntura económica, a crise do imobiliário, que se iniciou em 2007, e as opções de muitos proprietários, nomeadamente famílias que há muito migraram para outras zonas do país. 

O presidente da associação, João Gouveia, lamenta as actuais políticas fiscais, que não ajudam a atenuar o problema. “A ausência de uma política estruturada e contínua de desagravamento da fiscalidade local, designadamente em matéria de IMI e de taxas sobre as intervenções a realizar nos imóveis”, são os alvos das suas críticas. 

O vereador Rui Lopo, porém, garante que a autarquia aplica a taxa intermédia do Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI).  “O problema não é com a taxa, mas com os mecanismos de avaliação previstos na lei e impostos pela administração central. Essa avaliação não tem em conta um conjunto de factores que possam diferenciar [as situações], porque são também diferentes as condições de cada proprietário”, afirma. 

Rui Lopo sustenta que, nos últimos três anos, a câmara levou a cabo um conjunto de incentivos para que os actuais e novos proprietários reabilitem os imóveis. Entre esses incentivos, acrescenta, está a não cobrança de taxas camarárias, excepto as que estão ligadas às infra-estruturas de água e saneamento, e a não cobrança, a quem recupere os edifícios, do Imposto Municipal Sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (IMT).

Quando a degradação dos edifícios e a ausência de intervenção dos proprietários o impõem, explica Rui Lopo, a câmara assume a sua posse administrativa “para mitigar os problemas” e, nalguns casos, “a demolição por razões segurança, quando por exemplo uma fachada apresenta risco para a segurança pública”. Noutros casos procede ao “emparedamento por razoes de salubridade”, ou para evitar ocupações ilegais. 

Uma medida tomada pelo município que até agora não teve especial impacto foi a criação de “bolsas de projectistas e de construtores”, destinadas a tornar as intervenções mais baratas. O autarca frisa também que estão em curso medidas de desburocratização do licenciamento de obras que podem ajudar à reabilitação da zona histórica.

Por enquanto, todavia, o Barreiro velho continuar a caminhar para ruína.

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