Descoberto complexo de produção de cal utilizada na construção de Beja

Arqueólogos admitem que o achado não tem paralelo na Península Ibérica e lamentam que a EDIA não aceite o alargamento da área de investigação para interpretar o contexto que ficará submerso.

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O local situado a cerca de 15 quilómetros de Beja onde foram encontrados vários fornos romanos Oxana Ianin
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O projecto de escavação contratualizado está a chegar ao fim Oxana Ianin

Fez-se finalmente luz sobre o mistério da construção da cidade romana Pax Julia, que deu origem a Beja. Os arqueólogos descobriram a cerca de 15 quilómetros da capital do Baixo Alentejo os fornos nos quais, ao que tudo indica, se transformou no século I D.C, a pedra em cal.

A identificação do local, no Monte do Magra, freguesia de Baleizão, foi feita por uma equipa de arqueólogos da empresa ERA em Agosto de 2013, cerca de 18 meses após ter sido descoberto no centro histórico de Beja, um conjunto de edifícios, entre eles um templo religioso, que integrava o fórum romano de Pax Julia.

O arqueólogo Carlos Fabião já se deslocou ao sítio arqueológico, situado a cerca de 15 quilómetros da capital baixo alentejana, onde foram encontrados vários fornos romanos de onde saiu o material que contribuiu para o nascimento de Pax Julia. Nesta importante cidade funcionava o Conventus Pacensis que administrava uma das regiões que constituíam a Lusitânia naquela época. O mais interessante que se extrai daquela descoberta, explicou ao PÚBLICO, é que a estrutura funcionou durante o século I D.C, quando se iniciou a fundação da cidade romana.

“Até aqui perguntávamos onde é que se fez e onde se foi buscar” a cal para a sua construção. “Agora podemos dizer: é aqui”, assinala Carlos Fabião, dando conta de como ficou “impressionado” não só pela quantidade de fornos mas também pela dimensão de cada um deles. Embora tenham tamanhos distintos, rondarão os três metros por quatro.

O novo sítio arqueológico foi localizado na base de uma pequena encosta, nas proximidades de uma ribeira, no local onde vai ser erguida a barragem do Magra que faz parte do sub-sistema de rega do Pedrogão, uma obra a cargo da Empresa de Desenvolvimento e Infra-estruturas do Alqueva (EDIA).

Os trabalhos de escavação já executados expuseram a mancha geológica que forneceu a matéria-prima para a produção de cal, alguns dos fornos onde se processou a transformação da pedra, as respectivas áreas de trabalho e locais de despejo de resíduos.

A arqueóloga Lúcia Miguel, directora científica das escavações no Monte do Magra, explicou que “aos fornos estavam associados poços onde era guardada a cal que era coberta com uma película de água para que não solidificasse”.

Embora não seja possível datar com precisão, admite-se que a actividade no local tenha sido iniciada na década de 20 do século I e terá prosseguido ao longo de 30 a 40 anos.

“Encontrámos pisos que pareciam betão”, refere Lúcia Miguel descrevendo o ambiente de trabalho que se presume que tenha sido, pelos testemunhos arqueológicos recolhidos, “muito doloroso” para os trabalhadores da época que terão suportado “temperaturas altíssimas no Verão”. Vêem-se ainda as marcas da queima e as paredes de pedra calcinadas e ainda restos de lenha e folhas de oliveira que alimentavam os fornos.

Foram encontradas talhas grandes com cal que era utilizado para estuque. Este material misturado com areia, pedra e materiais de cerâmica dava origem ao que se chamava na época o Opus Caementicium, o cimento dos romanos. Com este construíam-se os pisos dos edifícios, que depois eram cobertos com blocos de mármore vindos da pedreira de Trigaches, nas proximidades de Beja, e que ainda hoje existe.

Não foi encontrado nenhum complexo de produção de cal semelhante ao localizado em Baleizão “o que não quer dizer que não encontramos por aí outros iguais”, admite a arqueóloga.

O projecto de escavação contratualizado com a ERA – Arqueologia está a chegar ao fim, mas outra empresa vai dar continuidade aos trabalhos na faixa de terra onde será erguido o muro da barragem. Contudo, a decisão tomada pela EDIA de não aceitar o prolongamento da escavação à área que ficará submersa suscita críticas do arqueólogo Miguel Lago, administrador delegado da ERA.

Em declarações ao PÚBLICO, esclareceu que o levantamento realizado no Monte do Magra implica uma abordagem de “grande detalhe”, sem a qual não é possível compreender a dinâmica de uso do sítio, frisando que a sua empresa tinha falado com a EDIA sobre o prolongamento das escavações para a zona da albufeira.

“Somos de opinião que os contextos, nomeadamente fornos e áreas de extracção de matéria-prima para a produção de cal, têm continuidade”, argumenta Miguel Lago, alegando que os dados já recolhidos não dão para “perceber, na integra, o sítio que foi escavado”. Interessa-lhe ainda saber a exacta dimensão dos fornos, a forma como foram utilizados ao longo do tempo e a tecnologia utilizada. Só na área onde vai ser erguida a barragem (muro de terra) existirão 15 fornos, admite o arqueólogo, frisando que não conhece equivalente em termos históricos.

“Pela primeira vez, e não apenas na Península Ibérica, temos a possibilidade de relacionar uma ‘cimenteira’ da época romana com uma cidade”, sublinha Miguel Lago, advertindo para as eventuais consequências que poderão resultar da inundação da área que o arqueólogos não exploraram, uma vez que a água esconderá “permanentemente uma realidade que ninguém sabe qual é”.

E propõe que, em alternativa às escavações, se façam prospecções geofísicas que permitiriam saber se há fornos, em que quantidade e que outro tipo de realidades existem na zona a submergir.

A EDIA, através do arqueólogo Paulo Marques, relativizou a importância do achado de Monte do Magra, afirmando que o sítio já “está caracterizado”, não partilhando, por isso, das apreensões expressas pelo administrador delegado da ERA.

Samuel Melro, arqueólogo da Direcção Regional de Cultura (DRC) do Alentejo confirma que na área da futura albufeira da barragem do Magra não haverá escavações arqueológicas. Admite, contudo, que o sítio identificado com os fornos “vai mais para além” dos cerca de 2000 metros quadrados que foram escavados até ao momento.

Notícia corrigida: Lúcia Miguel é o nome correcto da directora científica da escavação e não Lúcia Silva, como estava erradamente escrito. Também se corrigiu a expressão "villa romana", para "cidade romana"

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