Será possível racionalizar a problemática energia-clima à escala global?

A problemática actual da energia-clima à escala global é um domínio privilegiado para discutir a racionalidade humana

A problemática actual da energia-clima à escala global é um domínio privilegiado para discutir a racionalidade humana, tanto de um ponto de vista filosófico, como ético e político. Na impossibilidade de seguir por esta longa via adoptarei uma definição corrente de razão: a faculdade da mente humana que permite a prática do raciocínio lógico e a construção de argumentos racionais para compreender o mundo e para resolver problemas.

Consideremos então os factos. De acordo com um documento recente do 5º Relatório de Avaliação do IPCC (Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas), se as emissões globais de gases com efeito de estufa continuarem a crescer durante os próximos 15 anos, o problema das alterações climáticas tornar-se-á grave e praticamente impossível de combater com as tecnologias actuais.

Neste cenário as gerações vindouras, para evitar um clima muito adverso, teriam de usar tecnologias de geoengenharia, tais como a extracção de CO2 da atmosfera para o armazenar no subsolo. Contudo, não se sabe como desenvolver essas tecnologias à escala necessária para resolver o problema, nem onde se iria buscar o financiamento.

A concentração atmosférica actual do CO2, que é o gás cujas emissões antropogénicas mais contribuem para a mudança climática, é já superior a 400 ppmv (partes por milhão em volume) e, sem políticas de mitigação (redução das emissões) à escala global, aumentará para 500 ppmv nas próximas décadas.

Face a estas advertências da comunidade científica e de muitas organizações nacionais e internacionais, governamentais e não-governamentais, qual a situação actual? As emissões globais anuais de CO2 aumentaram em média de 2,2% durante o período 2000-2010 e apenas 1,3% no período 1970-2000.

Apesar de existir uma maior consciência a nível mundial sobre a problemática das alterações climáticas e de muitas pessoas, instituições e empresas estarem empenhadas na redução das emissões, o facto é que elas estão a aumentar a uma taxa anual crescente desde 1970. Aparentemente a razão prática não está a funcionar à escala global. Porquê?

A China é actualmente o maior emissor de CO2 do mundo. Porém, atenção! O crescimento do comércio internacional significa que muitos dos produtos consumidos nos países mais industrializados provêm dos países menos industrializados, tal com a China, a Índia e muitos outros. Uma grande parte das emissões correspondentes ao consumismo dos países mais ricos foram exportadas para aqueles países em desenvolvimento, em especial a China, para que o consumismo se mantivesse com produtos a preços relativamente baixos.

No que respeita à energia os combustíveis fósseis continuam a constituir cerca de 80% das fontes primárias de energia globais e se essa percentagem não descer o problema da mudança climática continuará a agravar-se. Por outro lado, o acesso a energia relativamente barata é um elemento essencial do nosso actual paradigma de desenvolvimento social e económico baseado num elevado consumo de energia e de outros recursos naturais.

A energia cara torna o crescimento económico muito mais difícil. De acordo com um documento recente da União Europeia, o custo da electricidade na Europa é mais do dobro do custo nos EUA e cerca de 20% superior ao da China. O gás natural na UE é cerca de três a quatro vezes mais caro do que nos EUA e na Federação da Rússia e cerca de 12% superior ao da China.

Estas disparidades resultam sobretudo da abundância de reservas de combustíveis fósseis em países fora da Europa, dos subsídios que alguns desses países atribuem à sua exploração e ao uso nos EUA da tecnologia inovadora da fracturação hidráulica para a extracção do gás de xisto. Entretanto a corrida ao gás de xisto nos EUA baixou o preço do carvão, que é o combustível fóssil que provoca mais emissões de CO2 por unidade de energia. O custo mais baixo do carvão incentiva o seu consumo em vários países, como, por exemplo, na China.

É neste cenário que a UE anunciou em 22 de Janeiro objectivos para a energia-clima em 2030 que incluem uma redução das emissões de gases com efeito de estufa de 40% em 2030, relativamente a 1990, e uma percentagem de energias renováveis de 27% no conjunto dos países da UE. Porém, a Comissão Europeia não estabeleceu metas percentuais de energias renováveis a nível nacional e foi muito vaga no que respeita à eficiência energética, o que é deplorável.

Quanto à exploração de gás de xisto, que gera problemas ambientais complexos, a Comissão Europeia renunciou a legislar. Este acordo minimalista revela as profundas divergências no seio da UE entre países com recursos fósseis, como a Grã-Bretanha e a Polónia, e outros mais conscientes dos problemas ambientais e de sustentabilidade que se avizinham.

Os objectivos anunciados são pouco ambiciosos e constituem uma subalternização da política do clima à problemática dos altos custos da energia na UE, do declínio da sua competitividade industrial e da perspectiva de que a economia terá uma lenta recuperação. Tudo preocupações legítimas e compreensíveis no quadro do actual sistema financeiro e económico global em que a competição é crescente. Estamos perante um primeiro sinal claro de que também na Europa os factores económicos de curto prazo se estão a sobrepor ao combate à mudança climática.

E o resto do mundo? Esse nem sequer tem planos concretos para 2030, incluindo os EUA, onde o Partido Republicano se opõe sistematicamente às medidas de mitigação por considerar que elas prejudicam o crescimento da economia. A ironia da situação é que relativamente a este “resto do mundo” as medidas anunciadas pela UE são pioneiras e muito corajosas.

De acordo com o referido relatório do IPCC, as emissões globais terão de ser reduzidas de 40% a 70% entre 2010 e 2050 para garantir uma probabilidade relativamente elevada de não ultrapassar um aumento da temperatura média global superior a 2ºC, valor que define o limiar de uma mudança climática gravosa. Para atingir este objectivo o mundo teria de investir anualmente em média cerca de 147 mil milhões de dólares em energias de baixo carbono entre 2010 e 2029.

Globalmente o custo de combater a mudança climática corresponde a uma redução do consumo de bens e serviços entre 1% e 4% em 2030, entre 2% e 6% em 2050 e entre 2% e 12% em 2100, comparativamente à inacção. É um custo muito baixo comparado com os benefícios que traria para as gerações dos nossos filhos e netos e para todas que lhes sucederem. Porém, não há sinais de que os países do mundo, especialmente os grandes emissores, se venham a comprometer efectivamente a cumprir objectivos de mitigação que evitem uma interferência perigosa sobre o sistema climático, o que revela um défice preocupante de razão prática à escala global.

O que é verdadeiramente importante para cada país, e se sobrepõe a tudo o resto, é abraçar fielmente o actual paradigma global de um desenvolvimento cada vez mais insustentável e lutar pelo melhor lugar possível nesse veículo com destino incerto. É quase irrelevante que esse veículo agrave profundamente as desigualdades sociais e económicas, degrade o ambiente e torne perigosamente escassos os recursos naturais.

As alterações climáticas, um problema menor, difuso e algo longínquo no tempo, não vão de modo algum afectar aqueles que constituem o 1% da população humana possuidora de cerca de metade da riqueza do mundo (relatório da Oxfam, Working for the few, Janeiro, 2014). Os que vão ser afectados são os mais pobres que vivem nos países mais vulneráveis à mudança climática, geralmente os menos desenvolvidos. Onde está a racionalidade ética desta situação?

Nunca é tarde para usar a razão na resolução de um problema. A mudança climática é um problema global complexo que nos envolve a todos e revela os limites do nosso modelo de crescimento. É importante salientar também os aspectos positivos, como, por exemplo, o facto de o Fórum Económico Mundial de Davos deste ano ter dedicado um dos quatro dias à problemática das alterações climáticas com 23 painéis de debate.

Empresas como a Coca-Cola reconhecem hoje em dia que a mudança climática está a prejudicar o seu negócio devido à escassez de água provocada por secas e inundações mais frequentes em várias regiões onde têm fábricas, como na Índia.

Não se trata de salvar o planeta porque esse não tem problemas existenciais e evolui segundo leis físicas completamente indiferentes à presença humana. Trata-se sim de aprendermos todos a usar a razão de forma colectiva e global para construir um paradigma de desenvolvimento sustentável.

 

 

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