O imperativo de descarbonizar a torrada

Por uma torrada e um café com leite, por pouco não vou parar ao hospital. Em fracções de segundo, tudo o que poderia dar errado materializou-se em desastre.

O pão era de milho. Cortei uma fatia em duas metades, inseri-as nas ranhuras da torradeira e voltei-me para o fogão para aquecer o leite. Depois, fui ver os meus emails – actividade que normalmente insula o seu praticante do mundo que o cerca. Toda a atenção é osmoticamente sugada pelo ecrã, restando um autómato inerte onde antes havia corpo e alma.

Emergi deste buraco negro digital com o cheiro a queimado. O pão estava calcinado e a torradeira fumegava copiosamente. Saltei da cadeira para desligá-la da tomada. Abri as janelas, agarrei no equipamento e num lapso de segundo julguei que a única forma de evitar uma severa intoxicação carbónica seria atirá-lo oito andares abaixo.

O lava-loiças desviou-me deste insano propósito para lançar-me noutro: mergulhar a torradeira debaixo de água – coisa que nunca, em nenhuma circunstância, se deve fazer. Podia ao menos jogar as torradas para a pia e abrir a torneira, extinguindo a funesta combustão. 

Nesse momento, porém, o leite ferveu. A espuma foi subindo e eu, ainda com a torradeira fumegante nas mãos, guinei à direita para alcançar o botão do gás. Foi aí que, traído por um olho que um saco de plástico deixou cego, experimentei na quina da parede a teoria física de que dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar ao mesmo tempo. A cabeçada abriu-me uma ferida na maçã esquerda do rosto, o leite derramou sobre o fogão e a negra torrada, sob a força água, transformou-se numa repugnante pasta petrolífera.

Ninguém imaginaria que o simples gosto de comer um pão aquecido e estaladiço poderia conduzir a tamanhas consequências. Mesmo sem sequelas faciais e higiénicas, é um prazer caro ao planeta. Uma torradeira tem cerca de 900 watts de potência. Numa família com cinco pessoas, como a minha, consomem-se facilmente dez torradas por dia. Para suprir este apetite, gasta-se energia suficiente para manter uma lâmpada acesa durante quatro horas. Num ano, soma-se o equivalente a 30% da electricidade requerida por um frigorífico. Vale a pena pensar nisso quando fazemos uma única torrada num aparelho com capacidade para quatro. É o descalabro.

As torradas nasceram da necessidade ou conveniência de se aproveitar o pão velho. Tal como a açorda, são uma versão ancestral de reciclagem na cozinha. Na verdade, trata-se antes de uma reutilização, uma alternativa mais nobre para os desperdícios.

Depois, porém, tornaram-se um capricho gustativo. Compra-se o pão fresco mas tostam-se-lhe as fatias na mesma, por questões meramente palatais.

Ao ónus energético deste deleite gastronómico acrescenta-se a vida efémera do equipamento em si, sobretudo os mais baratos. E se deixam de funcionar, é trocar por um novo. Mandar arranjar não é economicamente favorável e implica outros desprazeres, como o de ouvir o técnico a dizer que só vai ficar pronto dentro de um mês, se as peças chegarem a tempo.

Nada disso convencerá o cidadão comum a prescindir da tradicional torrada matinal em favor de um pão fresco ou trocar uma tosta mista por uma simples sandes.

Comida quente é uma marca indelével da espécie humana. Há muito o que fazer para reduzir a dependência energética do nosso almoço. E se queremos descarbonizar o futuro, vamos mesmo ter de arranjar uma solução para a torrada. 

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