Como desestimular um jovem a votar

Segundo o teorema fundamental da burocracia, o trajecto mais curto entre dois pontos nunca é uma recta.

Ele não ligou muito ao envelope com o seu nome. Afinal, como todo jovem de 18 anos, meu filho mais novo vive no mundo digital. Receber uma carta comum, em papel, é um evento apático, mais propenso à indiferença do que à curiosidade.

Chamei-lhe a atenção para a importância daquela em particular. Mas ao ler o primeiro parágrafo, via-se logo que nem um monge resistiria à notável falta de magnetismo da missiva. Assim começava: “Em cumprimento do dever geral de notificação que impende sobre a Administração Pública, previsto no art.º 114.º do Código do Procedimento Administrativo…”

Complexo princípio. Tropeça-se logo no verbo impender, que é bonito mas socialmente intransitivo. Segue-se a menção ao artigo 114.º, que nos remete aos exercícios escolares de dicção dos números ordinais. Neste caso, a pronúncia completa pode entalar a língua, comprometendo o apetite para o que vem a seguir, o suculento Código do Procedimento Administrativo, leitura ideal para tardes de domingo.

Era uma carta modelo, destinada a abrir as portas da vida política aos recém admitidos à maioridade. Conselho aos autores do documento: atenção às redundâncias. Já se tinham justificado, no princípio, com o cumprimento do dever de informar e as respectivas bases jurídicas. Dispensavam-se de repetir, mais à frente: “…cumpre informar que, nos termos de lei em vigor…”.

A bem da verdade, seja ela qual for, a lei agora aludida tinha a ver com o resto da frase: “….a inscrição no Recenseamento Eleitoral dos cidadãos portugueses, residentes em território nacional, processa-se de forma automática…” Obrigado por avisarem. Nada como um ofício para dizer que o que é automático funcionou.

Com dois esclarecimentos inúteis mas legalmente substanciados, perderam-se 47 palavras preambulares até se chegar à matéria de facto: “…pelo que pode exercer o seu direito ao voto…”. Eis finalmente o essencial: é mais um membro da família que já pode votar, mas “…desde que tenha completado 18 anos de idade até ao dia do ato eleitoral”.

O objectivo principal da correspondência era informar, afinal, qual era o número de eleitor do novo votante. Foi preciso balanço, pois não é dado que se transmita assim sem aviso prévio. Interpôs-se, por isso, um novo momento de incontinência vocabular: “Neste processo, cada cidadão fica inscrito na freguesia correspondente à morada indicada na identificação civil, ao obter Bilhete de Identidade ou Cartão do Cidadão, sendo-lhe atribuído um número de eleitor pela respectiva ordem sequencial numérica”. Fazem bem em optar pela sequência, em vez da aleatoriedade. Caso contrário, imaginem na fila à porta da urna:

- Qual é o seu número de eleitor?

- 12.468. E o seu?

- Raiz quadrada de 7.895.764, vezes x menos y elevado a pi.

Afinal, a identificação numérica foi a última coisa a aparecer, depois de cinco parágrafos de verborragia administrativa, incluindo o vital garrote cronológico dos prazos: neste caso dez dias para reclamar, seja lá do que for.

Seria mais fácil e eficaz escrever, em letras gordas: “Parabéns pelos seus 18 anos. Agora já pode votar. Este é seu número de eleitor:…”. Porém, segundo o teorema fundamental da burocracia, o trajecto mais curto entre dois pontos nunca é uma recta. No caminho da simplicidade, há sempre desvios para a complicação.

Com tamanha densidade, a carta obviamente naufragou. Bastou a leitura de duas linhas para meu filho deixar o papel em cima da mesa: “Ok, depois eu vejo isso”.

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