As duas curvas que vão mudar o mundo

Falta-nos ter maior consciência desta sociedade global e aprender a saber defendê-la.

É impossível prever o futuro das sociedades humanas nas próximas décadas devido à sua imensa complexidade e interactividade. Contudo, gostaríamos muito de o conhecer e estamos a ser confrontados permanentemente com cenários futuros na política, na geoestratégia, na finança, na economia, na sociologia, na tecnologia e na ciência, com horizontes temporais que vão desde semanas a décadas.

Esta actividade de construção e avaliação de cenários tem um nome: é a prospectiva proposta inicialmente por Gaston Berger, nos anos de 1950, e que sucede às variadíssimas práticas de divinação praticadas pelas sociedades pré-industriais. Apesar de todas as incertezas, é possível encontrar, nos sistemas humanos e na interacção com os sistemas naturais de que dependem, variáveis-mestras que determinam aspectos essenciais da sua evolução futura.

Nesse conjunto de variáveis, há duas que caracterizam uma parte importante da condição humana actual e futura e cujas curvas de evolução vão mudar profundamente o mundo. Uma delas é a população global, que, de acordo com um relatório recente das Nações Unidas, atingiu 7200 milhões em Julho de 2013. No século XX, triplicou, desde 2000 milhões em 1927 para 6000 milhões em 1999.

A chamada “transição demográfica”, identificada inicialmente por Warren Thompson, estabilizou a população dos países mais desenvolvidos em cerca de 1300 milhões, mas a população dos restantes países totaliza 5900 milhões e está a crescer, devido principalmente à fertilidade elevada das populações dos países mais pobres.

Como evoluirá a população global no futuro? Estamos perante um conceito abstracto. O que geralmente interessa a uma pessoa é saber se a população do seu país cresce e isso contribui para o crescimento da respectiva economia ou se, pelo contrário, decresce e a percentagem crescente de reformados que tal implica constitui um peso para a economia.

Porém, o conceito de população global é incontornável, porque vivemos todos no mesmo planeta que tem recursos finitos e deveria ter a capacidade de processar os resíduos, a poluição e todas as outras externalidades ambientais.

A China resolveu acelerar a transição demográfica através da odiosa política do filho único, posta em prática através de uma burocracia e fiscalização implacáveis, que contribuiu, juntamente com as reformas económicas, para o quase milagre de elevar o PIB per capita de 200 dólares em 1980 para 6000 dólares em 2012. As famílias chinesas acabaram por se habituar ao conforto do filho único, mas recentemente o Governo iniciou o processo de revogação dessa política, porque o consequente envelhecimento da população começou a dar sinais de que vai desacelerar o crescimento económico.

À escala global, os problemas são semelhantes. Uma fertilidade elevada conduz ao crescimento rápido da população, frequentemente incompatível, nos nossos dias, com as expectativas de melhoria da qualidade de vida das famílias, e uma fertilidade baixa conduz ao declínio rápido da população e a tendências de arrefecimento da economia.

O equilíbrio que a humanidade irá ou não conseguir estabelecer até ao fim do século terá implicações profundas na economia, no ambiente, na sustentabilidade do desenvolvimento e na qualidade de vida das populações.

Toda esta problemática está sintetizada na curva de evolução da população global. Os últimos cenários das Nações Unidas até ao fim do século, publicados este ano, são mais elevados do que os anteriores. Provavelmente, isso resulta de que a humanidade vai continuar com uma população muito elevada na situação de pobreza severa e extrema e que tem dificuldades acrescidas em assegurar um crescimento económico global robusto.

Os actuais cenários médios projectam um crescimento contínuo da população até 9600 milhões em 2050 e até 10.900 milhões em 2100, enquanto os anteriores subiam apenas até 9300 e 10.100, respectivamente. São diferenças relativamente pequenas, mas revelam muito sobre o futuro. Não atingir o máximo da população global antes de 2100 representa uma enorme pressão sobre os recursos naturais que o planeta tem para oferecer. Por outro lado, enquanto a população dos actuais países mais desenvolvidos irá manter-se em cerca de 1300 milhões até 2050, a população dos restantes irá crescer para 8300 milhões, em grande parte porque os países mais pobres têm grande dificuldade em promover a transição demográfica.

Vale a pena reflectir sobre este desequilíbrio avassalador e suas consequências. Actualmente, o mundo vive sob a tirania de um sistema financeiro e económico que aumenta as desigualdades e privilegia sem limites a faixa dos 0,1% mais ricos. Em 2009, a FAO dizia que para alimentar 9100 milhões de pessoas em 2050 seria necessário aumentar a produção agrícola de 70%, relativamente a 2005-2007. Será possível? Estarão completamente errados?

A outra variável relaciona-se directamente com a energia que constitui a base da nossa civilização actual. O consumo anual de energia per capita subiu desde 10 a 20 GJ (Giga Joules ou 1000 milhões Joules) nas sociedades primitivas de caçadores-recolectores para cerca de 250 GJ, actualmente. Este salto enorme deve-se principalmente ao consumo de combustíveis fósseis – carvão, petróleo e gás natural – que constituem cerca de 80% das fontes primárias de energia à escala global. A sua combustão lança para a atmosfera CO2, um gás com efeito de estufa. Parte deste CO2 mantém-se na atmosfera e intensifica o efeito de estufa natural, provocando alterações climáticas. As outras emissões antropogénicas de CO2 provêm das alterações no uso dos solos, principalmente da desflorestação, e constituem cerca de 20% do total.

A segunda curva que vai mudar o mundo é a curva de evolução das emissões globais de CO2, ou, para ser mais correcto do ponto de vista técnico, das emissões globais de gases com efeito de estufa (GEE), expressas em CO2 equivalente. Para controlar as alterações climáticas, ou seja, para travar a intensificação do efeito de estufa na nossa atmosfera, é necessário que a curva das emissões de GEE atinja um máximo e decresça a partir desse máximo entre 50 a 80%.

Não basta estabilizar o valor das emissões globais anuais de GEE. É mesmo preciso baixá-las de 50 a 80% para que a concentração de GEE na atmosfera estabilize e, consequentemente, para que a temperatura média global da atmosfera venha também a estabilizar. E ainda para que, muito mais tarde, o nível médio do mar estabilize. Esta última estabilização só terá lugar, em qualquer caso, daqui a muitas centenas de anos, devido à inércia térmica do oceano.

Imagine-se como será possível reduzir as emissões de CO2 de 50 a 80% face ao enraizado vício que adquirimos de consumir combustíveis fósseis! Seremos capazes de diminuir drasticamente o uso dos combustíveis fósseis e de travar a desflorestação, sobretudo nas regiões tropicais?

Mas não há volta a dar ao problema. Quanto mais tarde a humanidade se dispuser a reduzir fortemente as emissões de GEE para a atmosfera, mais intensas serão as alterações climáticas. Se não se atingir um máximo nos próximos 10 a 15 anos e não reduzirmos fortemente as emissões de pelo menos 60% até 2050, não evitaremos um aumento da temperatura média global superior a dois graus Celsius relativamente à temperatura pré-industrial. Se só conseguirmos atingir um máximo por volta de 2050 e baixar fortemente as emissões a partir daí, o aumento da temperatura média global atingirá cerca de quatro graus Celsius, as ondas de calor, as secas, as cheias, os ciclones tropicais com ventos fortíssimos serão ainda mais intensos e o nível médio do mar subirá mais. Será mais pronunciado o decréscimo da produção agrícola mundial provocado pelos eventos extremos mais intensos. Repare-se como as duas curvas que vão mudar o mundo se influenciam mutuamente.

Podemos negar que as emissões antropogénicas de CO2 e de outros GEE provoquem alterações climáticas, mas isso equivale a negar leis fundamentais da física como, por exemplo, a lei da radiação de Planck, e o problema não fica resolvido. Mais importante é o facto de que, por mais conveniente que isso pudesse ser, não conseguimos alterar as leis da física.  

Ambas as curvas que vão mudar o mundo são o somatório de muitos milhões de decisões e acções individuais e colectivas. Não são apenas o resultado do que se fará na Nigéria, na China, nos EUA, em Portugal, ou em cada um dos restantes países, mas o resultado do que todos nós, habitantes da Terra, formos fazer. Falta-nos pois ter maior consciência desta sociedade global e aprender a saber defendê-la.

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