Um Tour atípico

Aproveitando o dia de descanso da Volta à França e após dez etapas cumpridas, algumas notas a reter.

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O Tour tem sido marcado pelo muito público nas estradas e pelas inúmeras quedas motivadas pelo mau tempo Jean-Paul Pelissier/Reuters

Não há memória de uma edição que, ao primeiro dia de descanso, tivesse perdido os dois principais favoritos devido a quedas. Agora, por exibição e currículo, o camisola amarela Vincenzo Nibali é o homem a abater. Mas antes das grandes decisões, vale a pena recordar as personagens que marcaram a primeira metade do Tour 2014.

Tiago Machado

É Rui Costa que todos esperam ver no pódio final – com a desistência de Chris Froome e Alberto Contador poderá mesmo dizer-se que o sonho nunca esteve tão perto. Mas foi outro o português em destaque nas primeiras dez etapas. Tiago Machado roubou protagonismo ao campeão do mundo como só ele sabe, com o coração. Lutador, andou em fuga na nona etapa, galgou lugares e fixou-se no terceiro da geral. O sonho do sempre azarado “Tiaguinho” durou pouco. Acabou na descida entre Petit Ballon e o Col du Platzerwase, quando, sem saber como, caiu desamparado. Entrou na ambulância, foi dado como desistente pela organização. Teimoso, interpelou o médico da corrida, exigiu a bicicleta e voltou à estrada, com um cotovelo e um joelho em sangue. O esforço homérico levou a organização a repescá-lo e o diário desportivo L’Équipe a dedicar-lhe um artigo individual, intitulado “Heróico Machado”.

Tony Martin

Que o alemão da Omega Pharma-Quickstep é o melhor contra-relogista do mundo já todos sabiam. Que é um exemplo de profissionalismo e dedicação, duas caraterísticas que o tornam um dos mais apreciados ciclistas da actualidade, também. Mas nunca se tinha visto um Martin assim, apaixonado pelas fugas, aventureiro. Duas escapadas nos Vosgos em dias consecutivos valeram-lhe a sua primeira vitória numa etapa em linha no Tour (são três com os “cronos”), dois prémios de corredor mais combativo do dia, uma breve passagem pela liderança da montanha e o reconhecimento dos companheiros. “Melhor colega de equipa de sempre”, escreveu Michal Kwiatkowski, depois de vê-lo puxar durante dezenas de quilómetros com o objectivo de levá-lo ao triunfo em La Planche de Belles Filles.

Astana

Muito se falou das estratégias da Sky e da Tinkoff-Saxo para a 101.ª edição, mas foi a equipa cazaque que melhor se preparou. As evidências ao longo das primeiras dez etapas foram mais que muitas: o triunfo e a liderança de Nibali logo ao segundo dia, a colocação de três homens nos dez primeiros na visita ao “Inferno do Norte” e os dois minutos ganhos para a concorrência, o despir propositado da camisola amarela antes da primeira etapa de alta montanha. Com o experiente e polémico Alexander Vinokourov ao comando e com Jakob Fuglsang como plano B, a Astana sabe precisamente quando e onde atacar, não gastando esforços em vão, como mostrou Nibali rumo à vitória e à amarela na décima etapa.

Ciclismo francês

Um, dois, três, quatro. À saída dos Vosgos, os franceses estão em maioria no “top 10”. Os olhos do público local, que há anos esperam por voltar a ver um ciclista nacional no pódio de Paris, brilham quando vêem o jovem Romain Bardet no quarto lugar e de camisola branca vestida ou Tony, o herdeiro da dinastia Gallopin, que até já andou de amarelo, em quinto. Mas a esperança continua uma posição mais abaixo, em Thibaut Pinot, que parece ter regressado à forma que o levou a ser décimo no Tour 2012, na estreia e com 22 anos. E há ainda o veterano Jean-Christophe Péraud que, aos 37 anos, procura repetir o desempenho de 2011, quando terminou em nono. Depois de um 2013 para esquecer, sem qualquer nacional entre os dez primeiros em Paris, o ciclismo francês está bem e recomenda-se.

Joaquim Rodriguez

Nunca excluam o catalão das vossas apostas. O líder da Katusha tem, efectivamente, sete vidas. Quando já todos davam como certo que o verdadeiro Rodriguez só estaria de regresso na Vuelta, “Purito” inventou um novo objectivo. Ainda convalescente da operação a que uma queda no Giro o obrigou e afundado na geral individual, o terceiro do Tour 2013 lançou-se em fuga, sprintou nas contagens de montanha e vestiu a apetecível camisola às bolinhas vermelhas. A classificação da montanha é agora, assumidamente, a sua meta em Paris.

Peter Sagan

Falar de Marcel Kittel e dos seus três triunfos seria quase obrigatório, não fosse este homem. Peter Sagan ainda não ganhou uma etapa, mas esse pormenor não diminui a dimensão do espectáculo que tem proporcionado. Camisola verde desde a segunda jornada e com mais de 100 pontos de vantagem para o segundo classificado, o eslovaco foi 2.º-4.º-2.º-4.º-4.º-5.º-2.º antes do Tour entrar nas montanhas e está bem lançado para, aos 24 anos, conquistar a sua terceira camisola verde consecutiva – e o recorde de Erik Zabel ficaria a apenas três de distância.

Richie Porte

Entrou no Tour como trabalhador incansável de Chris Froome, pode sair como sucessor do britânico e de Bradley Wiggins no palmarés de vencedores da Volta à França. Chamado a assumir a liderança da Sky depois da desistência do campeão de 2013, não acusou a pressão. Sem dar nas vistas, o australiano de 29 já é segundo na geral, a 2m23s de Nibali. Melhor jovem do Giro 2010 e vencedor da Volta ao Algarve 2012, Porte tem finalmente aquilo que tanto desejava: uma oportunidade para afirmar-se como um dos grandes ciclistas da actualidade.

 

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