No futebol, o racismo continua a marcar golos

A banana comida por Dani Alves relembrou ao mundo que o racismo ainda é uma realidade quotidiana no futebol. Os estádios reflectem uma sociedade que não ultrapassou as noções de superioridade racial.

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Regis Duvignau/Reuters

Junho de 1984. A selecção inglesa regressa do Brasil depois de ter vencido um jogo amigável por 2-0 em pleno Maracanã. No mesmo avião segue um grupo de adeptos que passam o voo a gozar com Mark Chamberlain, Viv Anderson e John Barnes, os três negros da equipa britânica. Diziam que, na verdade, a Inglaterra tinha ganho apenas por 1-0, uma vez que o golo de John Barnes – que alguns consideram um dos melhores de sempre da selecção britânica – não deveria contar.

Agosto de 1992. O holandês Aron Winter, acabado de assinar pela Lazio, é recebido em Roma com graffitti onde se diz “Vai para casa, judeu”, apesar de o seu nome do meio ser Mohammed.

Outubro de 2000. Durante o jogo para a Liga dos Campeões entre a Lazio e o Arsenal, o defesa jugoslavo Sinisa Mihajlovic chama “preto” ao francês Patrick Vieira. O jogador da Lazio admitiu o facto, com a justificação de que Vieira lhe tinha chamado de “cigano”. Dino Zoff, o treinador da equipa italiana, desvalorizou o incidente, dizendo que o que se passou entre os dois jogadores foram “coisas normais”.

Novembro de 2005. O ex-defesa do Benfica, Marco Zoro, abandona o jogo da Serie A entre a sua equipa, o Messina, e o Inter de Milão, depois de ter passado o desafio a ouvir cânticos racistas das bancadas. “Fui mal tratado e não posso aguentar”, disse o costa-marfinense.

Abril de 2014. Uma banana é atirada das bancadas durante o jogo da Liga espanhola entre o Villarreal e o Barcelona na direcção do brasileiro Dani Alves. O jogador do Barcelona apanha e come a banana, dando início a uma campanha de consciencialização que percorreu o mundo.

A estes exemplos muitos mais poderiam ser adicionados, de várias décadas e em vários países europeus, que mostram que o racismo foi e continua a ser uma realidade no futebol, seja da parte de adeptos ou de jogadores. O fenómeno, como em muitos outros casos, não é exclusivo do futebol, apenas espelhando os vícios da sociedade.

O racismo nos estádios de futebol entrou para a ordem do dia a partir dos anos 1980, quando se iniciaram algumas das primeiras campanhas levadas a cabo pela UEFA e por organizações não-governamentais. Mas, na verdade, demonstrações xenófobas são tão antigas como a própria modalidade.

Nos anos 1920, o jogador Carlos Alberto, um negro que jogava no Fluminense, tinha o hábito de passar pó talco na cara para esconder as feições mulatas, que desagradavam aos adeptos das classes altas que apoiavam a equipa carioca. Os historiadores dividem-se quanto ao facto de Carlos Alberto o ter feito de livre vontade ou se era o clube que o obrigava, mas a verdade é que até aos dias de hoje o Fluminense ainda é conhecido como o clube “pó-de-arroz”.

A história é recordada hoje como uma caricatura de uma época longínqua, em que a raça como factor de exclusão era um dado adquirido, não só no Brasil, mas em todo o mundo. Quase um século depois, a escravatura foi suprimida, a Lei dos Direitos Civis de 1964 pôs fim à segregação racial nos EUA, o apartheid sul-africano foi abolido e, em 2008, Barack Obama tornou-se no primeiro presidente norte-americano não branco.

Mas há algo de perturbador nos episódios de racismo nos campos de futebol que vão sendo registados em pleno século XXI. Uma semana depois da banana de Dani Alves, o jogador senegalês do Levante, Pape Diop, passou o jogo contra o Atlético de Madrid a ouvir imitações de macacos sempre que tocava na bola. No final da partida, exasperado, Diop começou a dançar de forma provocatória a poucos metros dos adeptos rivais. “Não sei se é racismo ou falta de respeito, mas isto tem de acabar”, lamentou o jogador.

Sociedade racista, futebol racista
Acontecimentos do género não surpreendem o sociólogo Pedro de Almeida, que tem trabalhado no tema do racismo e futebol. “O paradigma racista e eurocêntrico está altamente enraizado nas sociedades europeias e o futebol é o reflexo lógico disso mesmo”, explica em conversa telefónica ao PÚBLICO.

A opinião defendida pelo doutorando do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra é a de que, nas sociedades europeias, o racismo está muito interiorizado, fruto da “ideia de superioridade da Europa em relação ao resto do mundo”. O futebol, como “palco privilegiado de afirmação de identidades locais e nacionais”, apenas “favorece o aparecimento de manifestações que designamos de extremistas”.

A mesma ideia é partilhada por Piara Powar, director-executivo da rede FARE (Football Against Racism in Europe), que diz ao PÚBLICO que “o futebol reflecte a sociedade”. Uma sociedade que, de acordo com Power, ainda não é “pós-racista”.

A rede dirigida por Powar congrega desde 1999 várias associações europeias de minorias étnicas e de combate ao racismo, que se juntaram para lutar contra a discriminação no futebol. A sua experiência mostrou-lhe que “nenhum país está imune” ao racismo, mas nota que “geralmente há mais problemas nos países do Sul e do Leste do que na Europa Central e do Norte”.

Na sequência do caso da banana atirada a Dani Alves, a Real Federação Espanhola de Futebol multou o Villarreal em 12 mil euros, mas decidiu não encerrar o estádio por considerar que o clube teve um comportamento exemplar ao banir o adepto responsável de voltar a entrar no El Madrigal.

A UEFA costuma actuar da mesma forma, mas apenas quando os comportamentos são identificados em jogos de competições europeias, reservando para as federações nacionais as punições nos campeonatos internos. Foi o que aconteceu, por exemplo, em Abril de 2013, quando o Dínamo de Kiev foi condenado por “conduta racista dos adeptos”, durante os jogos da Liga Europa contra o Paris Saint-Germain e Bordéus. A equipa ucraniana teve de jogar o encontro seguinte à porta fechada.

Em 2012, o FC Porto escapou ao encerramento do estádio, mas foi multado em mais de vinte mil euros depois de os seus adeptos terem dirigido cânticos racistas ao italiano Mario Balotelli, durante um jogo contra o Manchester City.

Para Piara Powar, isso ainda é pouco, apesar de reconhecer que o organismo europeu “tem feito um bom trabalho”. “Se forem apresentadas provas [de comportamentos racistas], algo será feito [pela UEFA]”, sublinha.

No que toca à FIFA, o activista considera que “faz mais gestos do que acções e isso devia mudar”. Internamente, Powar afirma que “gostava de ver a federação espanhola e o governo a fazerem mais”, nomeadamente através de “ideias e pela disponibilização de recursos” para o combate ao racismo.

Um debate necessário
As punições não passam, contudo, de soluções de curto-prazo para o problema do racismo. A raiz é mais profunda do que muitas vezes o discurso público faz crer. “Se na sociedade continuamos a viver com uma ideia de superioridade ocidental não seria de esperar que o futebol fosse uma excepção”, observa Pedro de Almeida.

O sociólogo critica as campanhas tradicionais de consciencialização por não atacarem um problema que é, acima de tudo, social e transversal. “Mesmo que a intenção seja boa, grande parte [das campanhas] acaba por assentar num certo moralismo, quase que a examinar a rectitude moral dos adeptos, que impede a verdadeira discussão do problema.”

A solução passa por uma mudança na forma de entender a História dos países, sobretudo daqueles com um passado colonial, como é o caso português. Uma revisão dos currículos escolares é uma das opções. Isso passaria por desfazer certas concepções sobre, por exemplo, a época dos Descobrimentos. “Toda essa ideia de Império está ainda muito presente”, observa Pedro de Almeida.

Entre outras questões, seria necessário dar a conhecer o que foi a escravatura, “não para diabolizar, mas para entender essas ideias”. A noção de escravatura que é apresentada nos manuais escolares é, segundo o investigador, como a de “uma nódoa negra, uma tragédia mas que já acabou”.

O dirigente da FARE não vai tão longe, mas refere a importância do debate público que existiu em Inglaterra ou em França acerca destas questões. “Sem esse debate público então será difícil entender um país ou uma identidade nacional”, nota Piara Powar.

Muito se avançou desde os tempos do pó-de-arroz do Fluminense, mas semana após semana continuam a chover bananas ou cânticos selváticos nos estádios europeus. O activista deixa um alerta: “Se não há preparação de uma sociedade, então estes episódios vão continuar a acontecer.”

Notícia corrigida às 12h10, rectificando o nome de Piara Powar

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