Do Quénia a Paris, a viagem amarela do caçador de escorpiões

Chris Froome confirmou, em Paris, o segundo triunfo na Volta a França. Habituado a contornar obstáculos, o talentoso britânico é um lutador e um optimista por natureza.

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Benoit Tessier/Reuters

Paris, 21 de Julho de 2013. A tarde arrastava-se, demorada, e o calor, insuportável, impunha recolhimento. A longa espera pelo pódio nocturno da 100.ª edição suplicava por uma leitura condicente. Uma fotografia, a toda a altura da primeira página, salpicada por letras que anunciavam o “Rei Sol”, facilitou a escolha. Num café, recolhido da artéria principal, o PÚBLICO abriu a bíblia do desporto francês e deparou-se com um Chris Froome desconhecido. Talvez em jeito premonitório, dada a supremacia do britânico naquele ano e as evidentes capacidades de trepador evidenciadas no ano anterior, quando foi segundo atrás de Bradley Wiggins, o L’Équipe viajou para Portugal e ficou esquecido numa estante. Até este domingo.

Neste domingo, foi dia de folhear de novo a estória do vencedor da Volta a França 2015 numa viagem que começa num bairro residencial de Nairobi, no Quénia. Do encontro entre Clive, um antigo jogador de hóquei da selecção britânica de sub-19, que emigrou para organizar safaris, e de Jane, filha de comerciantes de café, nasceu Chris, a 20 de Abril de 1985. O petiz, de pernas escanzeladas e tez branca, passou a infância na natureza. Quando não estava a acampar com os irmãos Jonathan e Jeremy, a perseguir escorpiões e serpentes ou a caçar coelhos para alimentar as suas duas pitons, Rocky e Shandy, “Froomey” passava horas a percorrer, de bicicleta, os 2000 metros de desnível do vale do Rift, com a única condição de voltar a casa antes do anoitecer.

Enérgico e aventureiro, o mais novo dos três irmãos perdia-se em sonhos. No seu boletim escolar as queixas multiplicavam-se. Preocupada, Jane Froome procurou David Kinjah, um antigo ciclista que treinava vários miúdos e perguntou-lhe se o seu filho, então com 11 anos, podia juntar-se à prole nas férias escolares. “O Chris era apenas um rapaz cool, sem aptidões especiais, sem músculos, com um rosto de bebé, como os da banda desenhada. Mas a sua melhor característica, a que ainda hoje mantém, é o espírito positivo. Era gentil com todos, fazia amigos rapidamente, era muito generoso, partilhava tudo”.
Durante quase quatro anos, a modesta casa de Kinjah, na aldeia de Kikuyu, tão pequena que, à noite, as bicicletas ficavam suspensas no tecto, foi o lar do duplo vencedor do Tour. Com aquele que define como seu mentor e o maior responsável pelo seu sucesso, o único rapaz branco daquelas paragens aprendeu a falar swahili e a trabalhar em equipa, desenvolveu a sua técnica e interiorizou que para ser um campeão tinha de ser um só com a bicicleta.

Estudioso e resistente
Um duro golpe — o divórcio dos pais — separou o líder da Sky de David Kinjah. Partiu com o pai para a África do Sul, onde viveu em regime de internato na St.Andrew’s School. Experimentou râguebi, críquete e squash só para descobrir que, num país onde as corridas de bicicletas proliferavam, o ciclismo era o seu destino. Tentou contorná-lo ao matricular-se em Economia na Universidade de Joanesburgo, mas dois anos a levantar-se às 5h00 para pedalar duas horas e um telefonema do dono de uma pequena academia de ciclismo foram suficientes para reconsiderar o seu futuro.

Robbie Nilsen prometeu ensinar-lhe como sobreviver às nervosas provas sul-africanas, mas ele queria mais. Consultou livros de metodologia de treino, psicologia, nutrição. Definiu uma dieta rígida, ganhou massa muscular. Tornou-se trepador. No final de cada treino, vestia uma saia queniana, como um guerreiro. O cabelo longo e as pulseiras coloridas que usava justificaram a sua alcunha. “Moisés” tornou-se profissional em 2007, na sul-africana Konica Minolta e representou a equipa de desenvolvimento da União Ciclista Internacional, captando a atenção da multiétnica Barloworld. Na sua progressão, exibia orgulhoso as suas raízes africanas, em camisas tradicionais do Quénia, o país do qual abdicou em 2008 devido a um diferendo com a federação nacional.

Sem nunca ter vivido na Grã-Bretanha, escolheu ser britânico. E foi essa escolha que determinou o ciclista que é hoje, um corajoso que aprendeu a viver com a bilhárzia, uma doença tropical parasitária incurável que destrói os glóbulos vermelhos, e um corredor extraordinário que soube esperar pelo seu momento para ser líder da super-poderosa Sky.

Neste domingo, o tímido e educado “Froomey” subiu, pela segunda vez, ao degrau mais alto do pódio em Paris. “Foi um Tour muito difícil, sobre a bicicleta e fora dela. É um sentimento incrível poder estar aqui. Houve algum stress durante a prova, mas é o ciclismo de 2015... Quero prestar homenagem aos meus colegas e dizer-lhes que esta camisola amarela é tanto deles como minha. Eu conheço a história da camisola amarela, os lados bons e os maus, e prometo que não vou desrespeitá-la”, assumiu o vencedor, de microfone em punho no centro da capital francesa.

Feita a festa, recebidos os elogios que lhe causam algum desconforto, o corredor de 30 anos poderá finalmente voltar ao recato monegasco de que tanto gosta, embrenhando-se na leitura de livros de Wilbur Smith e nas biografias de campeões da modalidade. Ou desafiando a mulher, Michelle, grávida de um menino, a acompanhá-lo numa das suas investidas, de arpão em punho, contra os polvos.

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