Das artes de governar em Luiz Felipe Scolari

Em Scolari criam-se e deixa-se que se criem condições para que os jogadores cuidem, eles mesmos, da sua “força anímica”.

Em 2012-2013, a equipa do Bayern Munique ganhou tudo o que havia para ganhar e Luiz Gustavo fazia parte desse plantel. No final da época, contudo, o médio brasileiro acabou por ser transferido. A sua saída coincidiu com a chegada de Josep Guardiola a Munique. O brasileiro não era o tipo de jogador que o novo treinador idealizara para o seu meio-campo e, de resto, foi o defesa alemão Philip Lahm que melhor se adaptou à linha média preconizada pelo catalão.

A menor habilidade técnica de Luiz Gustavo tirou-lhe um lugar no tiki-taka de Guardiola, mas não o impede de hoje ser titular da selecção brasileira. Fazendo-o actuar à frente dos defesas centrais, Luiz Felipe Scolari terá encontrado nele atributos fundamentais à sua ideia de futebol. Para o seleccionador brasileiro, o primeiro objectivo do jogo é a vitória e para que esta seja alcançada privilegia atributos como a força física, a disciplina táctica e o compromisso com o colectivo. Na contenda entre defensores do “futebol-resultado” e apologistas do “futebol-arte”, Scolari posiciona-se do lado dos primeiros. À derrota do Brasil de 1982 e de 1986, essa selecção de Telê Santana, Zico, Falcão e Sócrates, os “resultadistas” como Scolari preferem o sucesso do Brasil de 1994, com o seu “futebol pragmático” e um meio-campo formado por Dunga, Mauro Silva, Zinho e Mazinho.

A mundivisão futebolística de Scolari começou a ganhar forma quando o brasileiro era ainda jogador. Em 1976, falava-nos já de quanto apreciava “uma vida cheia de obrigações, de trabalho”, e que o seu futebol era feito de “vigor físico”. Sem cerimónia, rematava: “sou de despachar bolas na área e não de enfeitar”. Mais tarde, em 1981, em vésperas de arrumar as chuteiras e iniciar a carreira de treinador, Scolari de novo se definiria como “defesa viril, valente”, ao que acrescentava: “os que não têm categoria devem procurar destacar-se pela força física, pelo empenho, pela garra, porque serão muito observados e bem vistos, não apenas pelos adeptos, mas também pelos dirigentes e treinadores”.

Foi somente à chegada do novo século, no entanto, que o brasileiro se tornou objecto de atenção à escala global. Figura pública no Brasil, onde na década de 90 treinara clubes como o Grémio de Porto Alegre e o Palmeiras, Scolari viu o seu nome catapultado para a fama internacional em 2002, quando dirigiu a selecção brasileira no Mundial do Japão e da Coreia do Sul. A leitura do diário que escreveu nessa circunstância é particularmente sugestiva. Relatando alguns dos momentos prévios aos jogos que levaram o Brasil ao penta-campeonato, Scolari destaca, entre outros aspectos, a importância de fazer “a oração com o grupo” e a necessidade de frisar a “obediência às ordens”.

Esta forma de entender o futebol, diga-se, começou por ser notícia mundial antes mesmo do torneio ter início, com a polémica em torno da convocatória do avançado Romário. O assunto foi dramatizado na imprensa sensacionalista brasileira, mas também suscitou interjeições de críticos informados como Jorge Valdano, o ex-jogador e ex-treinador argentino, que na ocasião escreveu: “Receio que o futebol metalúrgico de hoje torne proibido que jogadores como Romário desenvolvam os seus instintos. Viva a diferença, viva a vitória, mas também a imaginação. Viva Romário e a pureza daquele futebol que o novo século ameaça roubar-nos!”.

Indiferente a estas pressões, Scolari não convocou o avançado, dispensando-o de obedecer às suas ordens, livre para continuar a errar pela noite do Rio de Janeiro. De resto, a distância de Scolari ao hedonismo que faz a “má fama” carioca tem levado a que a sua proveniência gaúcha seja uma e outra vez enfatizada. A sua concepção do futebol, caracterizada por predicar o trabalho e a obediência, radicaria na sua geografia de origem, ao sul do Brasil e a norte da região platense, na terra onde despontariam as raízes de um futebol demasiado aguerrido para aceitar os brinca n’areia de Copacabana.

A alusão às origens gaúchas de Scolari como factor explicativo da sua mundivisão futebolística tem méritos. Mostrando-nos que aquilo por que dividimos o mundo em nações também cinde as próprias nações em diferentes regiões, encontramos-lhe a virtude de relativizar os estereótipos nacionais que por estes dias vão sendo banalizados no comentário televisivo, da “eficácia germânica” à “ingenuidade ganesa”. Trata-se, porém, de um mérito limitado. Com efeito, devemos às identidades regionais igual esforço crítico de relativização. É que por mais gaúcho que seja Scolari, Ronaldinho não menos o será. Como antídoto contra as fórmulas nacionalistas, preferimos antes regressar a uma declaração proferida há não muito tempo pelo treinador Jorge Jesus. Confrontado com o reduzido número de jogadores portugueses no plantel do seu clube, Jesus disse não existirem jogadores nacionais ou jogadores estrangeiros, mas jogadores de futebol. Fazendo jus à figura proletária dos futebolistas, que se revela na sua dupla condição de jogadores que não têm pátria e de mercadorias compradas e vendidas não importa onde, uma tal visão internacionalista merece o nosso aplauso. Porque ela vence preconceitos, tratem estes de censurar um Brasil feito de Luiz Gustavos ou uma Alemanha de tiki-taka, a qual, à boleia da reinvenção de jogadores como Lahm, se dispõe agora em busca de princípios de jogo que se supunha exclusivos de um país e de uma cidade – Espanha e Barcelona.

Ao invés de procurarmos no jogo evidência da identidade cultural de uma nação ou de uma região, propomos em seguida perguntar pelo que as mundivisões futebolísticas nos dizem (e permitem dizer) acerca de um problema universal. Atravessando o domínio desportivo, mas também esferas tão distintas como as da organização empresarial, da ordem educativa, da economia familiar ou do sistema político, esse problema é o das artes de governar.

No início da década de 80, ao tempo em que Scolari iniciava a sua carreira de treinador, uma experiência desportiva relativamente inaudita tinha lugar na área metropolitana de São Paulo, então acometida pelas greves do ABC paulista. Praticando um estilo de jogo que se fez objecto da admiração dos adeptos do “futebol arte”, os jogadores do Corinthians inscreviam na sua camisola mensagens contra a Ditadura Militar e experimentavam novas formas de governar um clube. Sob o lema “ser campeão é detalhe”, diferentes práticas de auto-governo (com incidência no processo de formação do onze titular ou na política de contratações do clube) disputavam a soberania do treinador. Ora, os princípios de autoridade caros a Scolari não poderiam ser mais contraditórios com esta Democracia Corinthiana em que pontuavam jogadores como Sócrates ou Casagrande.

A esta luz, é o conhecido elogio de Scolari (o “Sargentão”) a um homem como Augusto Pinochet que se revela como mais do que um dislate. Podemos inclusivamente colocar a hipótese de “resultadistas” como o seleccionador brasileiro, ao afirmarem a importância da vitória sobre o modo da sua produção, visarem antes de mais a sagração de uma prática disciplinar e autoritária do poder. O mesmo, é claro, pode ser perguntado a respeito das críticas de que Scolari tem sido alvo. Consequência de divergências de foro desportivo, essas críticas também farão eco de determinados princípios ideológicos, ou não tivesse sido um dos mais prestigiados intelectuais da esquerda latino-americana, Eduardo Galeano, a escrever o seguinte sobre Romário: “Atingiu a fama sem pagar tributo à mentira necessária: este homem muito pobre deu-se sempre ao luxo de fazer o que queria, apreciador da noite, farrista, e sempre disse o que pensava sem pensar o que dizia”.

Qualquer referência aos princípios ideológicos enquanto factores explicativos de diferentes mundivisões futebolísticas deve, todavia, ser feita com prudência. Convicções no âmbito geral da ideologia podem fundamentar ideias no âmbito específico do futebol, mas estas são igualmente sensíveis às vicissitudes e circunstancialismos de um jogo que tem uma história própria desenvolvida no interior das quatro linhas. Fácil é de ver, por exemplo, que a mundivisão futebolística de Scolari, obstando à convocação de Romário, não impediu que o Brasil de 2002 contasse com um trio atacante formado por jogadores tão singulares como Ronaldo, Ronaldinho e Rivaldo.

De resto, uma história das artes de governar não tem que obedecer simplesmente às divisões traçadas nos mapas de ideologias e ideias, sejam estas de âmbito geral e falem de direita e esquerda ou sejam de âmbito específico e falem de “resultadistas” e “artistas”. Se podemos encontrar em Scolari a crítica da rebeldia que caracterizará a personalidade de Romário, seria precipitado inferirmos, a partir daí, que o treinador brasileiro simplesmente coloca o todo acima das partes. Recorrendo a saberes especializados para traçar perfis individuais dos futebolistas às suas ordens, ao longo dos torneios o treinador brasileiro tanto se socorre da palestra motivacional de grupo como de conversas personalizadas. Dir-se-ia que Scolari, no seu exercício de um poder pastoral, pretende cuidar de todos como de cada um.

Cautela idêntica merece a discussão sobre o lugar que Scolari reserva à força. Mais do que fazer mero louvor da quantidade contra a qualidade, não raras vezes o treinador brasileiro pretende intersectar a ordem do “corpo” com os domínios da “alma”. No seu discurso, o conceito que mais frequentemente opera esta intersecção é o de “raça”, embora outros lugares-comuns sejam por ele também invocados. Próximo a 2004, por exemplo, o brasileiro dizia que “o jogador português precisa de jogar com mais “’raça’”, mas também que deveria deixar de ter “medo da felicidade”.

Enfim, em Scolari criam-se e deixa-se que se criem condições para que os jogadores cuidem, eles mesmos, da sua “força anímica”. É a este respeito inteligível o seu recurso a toda uma parafernália musical e religiosa de tecnologias de poder: orações, rodas de samba, Nossas Senhoras, Roberto Leal, etc.. Pode até ser que Scolari ignore a redefinição teórica que leva José Mourinho a conceber a força como um fenómeno qualitativo, mas os seus procedimentos tradicionalistas e paternalistas não desmerecem os atributos técnico-científicos que levaram à consagração do português enquanto modelo de gestão de recursos humanos. 

E terminamos regressando a Luís Gustavo. É que mesmo os termos da oposição que fez dele um jogador querido a Scolari e mal-amado por Guardiola devem ser por nós precisados. Pois o tiki-taka de Guardiola trata menos de privilegiar o ataque e secundarizar a defesa do que de rejeitar a divisão do trabalho que atribui a uns a responsabilidade pelo momento defensivo e reserva a outros o prazer ofensivo. Ou não tivesse Luís Gustavo, ele também, o direito de errar pela noite carioca. 

 
Bibliografia:

Bruno Oliveira, Nuno Amieiro, Nuno Resende. Mourinho – Porquê tantas vitórias?. Lisboa, Gradiva, 2006.

José Carlos Freitas. Luis Felipe, o homem por trás de Scolari. Lisboa, Prime Books, 2008.

José Paulo Florenzano. Democracia corinthiana: práticas de liberdade no futebol brasileiro. São Paulo, EDUC, 2009

Neil Carter. The Football Manager: A History. Londres, Routledge, 2006.

Ruy Carlos Ostermann. Scolari, A alma do penta. Lisboa, Book Tree, 2003.

Sócrates e Ricardo Gozzi. Democracia Corinthiana: a utopia em jogo. São Paulo, Boitempo, 2002.

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