Aprender a correr na era da técnica

No início, o objectivo era combater o sedentarismo, mas agora que “a corrida já não é uma moda, mas uma forma de estar”, os 57 centros do Programa Nacional de Marcha e Corrida estão focados em ensinar a técnica, reforçar músculos e prevenir lesões associadas ao quarto desporto mais praticado no país

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Diogo Baptista
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Vítor perdeu 33 quilos em 18 meses. Culpa da dieta e das caminhadas. A Tiago os valores altos do colesterol deixaram de aparecer nas análises. Ana nunca mais esqueceu a garrafa de água. E, em dois meses, Manuela já nota “diferença na resistência da ‘máquina’”. Vivem os quatro em Águeda e começaram a correr e a caminhar pensando que era fácil. Não será assim tanto. Cometem-se erros de postura, excedem-se os limites do corpo, e os aquecimentos, alongamentos e hidratação ficam para segundo e terceiro planos. Passaram a corrigir as falhas nos treinos do Centro Municipal de Marcha e Corrida de Águeda, gratuitamente – o projecto é financiado a cem por cento pela autarquia – e com a ajuda de técnicos especializados (formados pela Faculdade de Desporto da Universidade do Porto). Entre leitões e espumante da Bairrada, este é um dos 57 centros do Programa Nacional de Marcha e Corrida (PNMC), lançado em 2009 pela Federação Portuguesa de Atletismo (FPA) sob a chancela do então Instituto do Desporto, apostado em contrariar o sedentarismo e promover estilos de vida saudáveis.

“Hoje vamos ter um treino de rampas”, adianta João Domingues, técnico desportivo, a afastar a aragem do rio Águeda com a manga curta. Os pequenos saltos e ondulações do corpo, para aquecer, começam às 19 horas, em frente ao Ginásio Clube de Águeda, que cede os balneários. Outros dias são reservados a exercícios para melhorar a técnica de corrida, a força e a flexibilidade em escadas, trilhos ou nos percursos dos 22 lugares do concelho, desde o centro urbano até à serra. Ao todo, há 600 pessoas a praticar desporto através do Centro de Marcha e Corrida de Águeda. Na freguesia de Barrô, onde se desloca um técnico uma vez por semana, quem já pratica a modalidade desafia os restantes a juntarem-se ao grupo para tentar bater o recorde de participantes no município. E em Setembro, os habitantes de Alcafaz organizam a Caminhada Gastronómica – que começa na “pista” e termina na mesa, como o nome indica –, onde se cometem alguns “erros desportivos” a que o corpo não resiste mas que não são chamados ao caso. É a excepção à regra.  

A análise do vereador do Desporto e Turismo da Câmara Municipal de Águeda, Edson Santos, é prática: “A população viu a vantagem do desporto para a saúde.” Considerando este factor e o intuito do programa, a autarquia estabeleceu uma parceria com o Centro de Saúde local através da qual é assegurada uma avaliação médica no momento de inscrição no centro de marcha e corrida. Ao mínimo sinal de alarme, dá-se o acompanhamento médico.

A Tiago Esteves, de 32 anos, aconteceu o inverso. “Descobri que tinha o colesterol alto e por isso queria fazer algum tipo de actividade física. Mas não tinha noção de que correr fosse tão exigente”, admite, mesmo que o porte atlético faça duvidar. Com pouco mais de um ano de treinos, tornou-se um dos melhores do grupo. “Alguns já me põem a suar a mim”, comenta o treinador João Domingues, referindo-se a atletas como Tiago.

Pessoal, social
Mas não é exclusivamente para melhorar a saúde e aprender a correr que os aguedenses saem de casa. No município, onde a taxa de desemprego ronda os 12% e vivem 158 idosos por cada 100 jovens, o contacto social é o principal motor das corridas. O fenómeno, aliás, replica-se pelo país. “Algumas destas pessoas vivem relativamente isoladas e esta é uma maneira de conviverem”, diz Marco Marques, enquanto os atletas fazem do ponto de aquecimento um lugar de conversa pegada. Como explica Pedro Rocha, coordenador do PNMC, são “pessoas não procuram actividades como ginásios ou desportos colectivos e a sua preocupação já não é só a actividade física”. “O factor social, o desafio e a vontade de cumprir objectivos, como correr mais longe e mais rápido”, são as principais motivações dos 4000 utentes do programa que abrange todas as idades (a faixa etária mais presente é dos 45 aos 50 anos). Em Águeda, corre-se dos 8 aos 80, literalmente. “O mais novo é o filho do vereador [do Desporto], com 8 anos, e a mais velha é a senhora Joana, que tem 80”, refere Marco, técnico do centro.

Mas há outra análise a detalhar. Se em 2009, quando o PNMC foi lançado, a principal preocupação era combater o sedentarismo, hoje “o cenário é diferente”, comenta Pedro Rocha. As 872 provas oficiais registadas em 2014 (de acordo com o jornal i) e os 1,45 milhões de praticantes da modalidade (segundo o estudo “Prática de Corrida em Portugal”, divulgado pelo IPAM em Setembro de 2014) retratam um país em que a corrida é o quarto desporto mais praticado. “Por isso, estamos a conduzir um aconselhamento para além disso [do incentivo à prática de exercício físico]”, refere o coordenador, que reconhece que “a corrida já não é uma moda, mas uma forma de estar”.

O programa contrabalança, desta forma, um quadro de erros cometidos na corrida e na caminhada sem acompanhamento técnico e médico, praticadas sobretudo em contexto de prova e em grupos informais criados de forma espontânea. “A corrida pode parecer uma actvidade extremamente simples de executar, mas, com exageros, pode conduzir a lesões”, argumenta Pedro Rocha, que aponta os erros por falta de orientação e de definição de objectivos como os mais frequentes e preocupantes. Se as regras do jogo não são “prescritas com cuidado e adaptadas às reais capacidades dos praticantes” e se não existe “um antes e um depois” de cada treino, a corrida pode trazer sérias desvantagens à saúde.

Quem tem medo de correr?
Manuela Santos pertence ao grupo da marcha. Protege-se do Outono com um casaco leve e, embora tenha começado a caminhar com o grupo de Águeda há apenas dois meses, já calça as sapatilhas certas. Tem 52 anos, é contabilista e andava “à procura de uma actividade exactamente como esta”, porque “andar sozinha não resulta” e a passadeira – esquecida em casa – “também não”. “Tem de ser com mais pessoas, para nos motivarmos, e isto está muito bem feito porque somos acompanhados por profissionais que sabem o que devemos fazer.”

Nunca se sentiu deslocada, “porque há grupos com diferentes ritmos” e, desde que se inscreveu no centro desportivo, o estado de espírito é outro. “Para quem passa um dia inteiro fechado entre quatro paredes, este ar puro e o contacto com a natureza fazem muito bem”, mesmo sendo hoje um “daqueles ‘treininhos’ de que eles não gostam”, mas que contribuem decisivamente para um melhor desempenho físico, lembra João Domingues.

Os 60 atletas de hoje vão adaptar o corpo aos desníveis do terreno e reforçar os músculos. É uma sessão que os ajuda a correr ou caminhar com maior eficácia e a minimizar a possibilidade de rupturas musculares, inflamações ou entorses. “Correr não é só saltar e andar com as pernas para a frente”, aprendeu Ana Melo, de 29 anos, empresária na área do turismo, que se embrenhou na modalidade em Agosto sem nunca ter gostado dela mas que já começa a “ganhar o ‘bichinho’ das corridas”. “Já estou inscrita numa”, diz.

No início da prática, a maioria das pessoas sente uma evolução rápida, tanto ao nível de distâncias como de velocidades, “mas chega a uma altura que, sem um treino acompanhado, não passa dali”, garante João Domingues, que normalmente dirige o pelotão mais lento. É aqui que o aquecimento termina. A mancha de corredores e caminhantes que vemos a cruzar a cidade seria um cenário bastante improvável há dois anos, quando o centro ainda não existia. Marco Marques acredita que foram mudadas mentalidades e as pessoas que “não tinham à-vontade” para praticar exercício no espaço público foram rapidamente absorvidas pelo fenómeno da corrida. Para o vereador, Edson Santos, é algo de “espantoso”, sobretudo porque, “normalmente, mudar hábitos leva muito tempo”.

“Vamos embora! Toca a correr!” Mas Vítor Cardoso vai a andar, ritmado. Há dois anos, nem isso seria possível. Pesava 128 quilos. Muitas caminhadas depois (e sob a disciplina de uma dieta difícil para quem tem “boa boca” e vive numa “terra extremamente rica em termos alimentares”), a balança passou a marcar 95. “Tenho 53 anos e tenho de ter presente que é preciso fazer exercício. E é preciso fazer bem, com rigor, com aquecimento e sem exageros. Temos de perceber o nosso corpo e quando devemos parar”, elucida. Fora das actividades do centro, chega a caminhar 21 quilómetros pelos meandros de Águeda e é assim que vai conhecendo melhor a terra e o corpo. 

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