Postal das Alcáçovas: Poetas à janela

Na simplicidade, encontramos a maior riqueza da humanidade. Não há ocasião em que volte às Alcáçovas que não sinta o sabor daqueles rebuçados a derreter na boca.

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"O bando entretanto já voava Rua do Carmo abaixo" João da Silva
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No dia 1 de novembro, Dia de Todos os Santos, é tradição as crianças saírem à rua em pequenos bandos para pedir o Pão por Deus. O costume ainda se mantém com este nome em algumas zonas do país, mas em muitos outras, sobretudo nos grandes centros urbanos, a tradição foi americanizada e os miúdos agora mascaram-se de monstros e bruxas e gritam "doçura ou travessura!". Não renego a mudança, mas quando no dia 1 de novembro os miúdos me tocam à porta, independentemente do que trajam ou dizem, continuo a pensar que vêm ao Pão por Deus. Não pelo significado religioso, mas por uma memória específica.

Quando eu tinha sete ou oito anos, os meus pais aproveitaram o feriado do Dia de Todos os Santos para visitar o meu avô paterno, que vivia nas Alcáçovas, vila do concelho de Viana do Alentejo, onde o meu pai viveu boa parte da sua infância e juventude. Nessa manhã bem cedo, deram-me um saco de pano para eu ir ao Pão por Deus. Eu era muito tímido e só saí de casa na companhia dos meus pais. Lembro-me de ter batido à porta de algumas casas e de ter recebido algumas carcaças, mas nem um único doce. A dada altura, vindos da Rua dos Escudeiros, chegámos à mercearia que se situava na esquina da Rua dos Ciprestes e da Rua do Carmo.

Os meus olhos brilharam quando vi o senhor Luís Murita, proprietário do estabelecimento, a abrir um enorme pote de vidro que continha rebuçados de todas as cores. Num acesso de descaramento estimulado pela ânsia de encher o saco de rebuçados, larguei a mão da minha mãe e avancei. Eu sorri e o senhor Luís Murita atirou os rebuçados ao ar. Abri as mãos para os receber. Nesse instante, vindos não sei de onde, um bando de jovens alcaçovenses arrebatou todos os rebuçados. Olhei para as minhas mãos vazias e tive vontade de chorar. Ao perceber o que se passara, o senhor Luís Murita atirou alguns rebuçados para junto dos meus pés. Baixei-me rapidamente e coloquei-os no saco. O bando, entretanto, já voava Rua do Carmo abaixo.

"Todos somos feitos de comédia e de drama", escreveu José Maria Fontes Ilhéu (29/07/1934), natural das Alcáçovas. Li a frase no cartaz exposto no Jardim dos Poetas, junto ao jardim público da vila, que exibe ainda o rosto do autor, um belíssimo instantâneo captado pelo Mestre Homem Cardoso, um dos protagonistas da exposição fotográfica literária intitulada Poetas à Janela, que esteve em exibição entre 2 de setembro de 2023 e 21 de março de 2024 (e ainda por lá continua) no Jardim dos Poetas e no Páteo dos Poetas no Paço dos Henriques, a 50 metros do local onde se situava a mercearia do senhor Luís Murita.

Noutro cartaz, vemos a figura de Manuel António Calado (11/12/1951), também natural das Alcáçovas, motorista, e a frase "Escreve a poesia. Porque se não for escrita, morre". Ali bem perto, Edmundo de Carvalho Boleto (29/01/1933), natural de Vendas Novas, trabalhador rural, conta-nos o seu truque para contornar o analfabetismo: "Eu não sabia ler nem escrever, mas fazia a quadra à noite, na cama. No dia seguinte ia dizer e aquilo ficava-me na ideia."

Aida Satiro (30/11/1946), natural das Alcáçovas, ajudante de cozinha, sorri-nos enquanto segura um livro e, com um brilho nos olhos, partilha: "Éramos pobres, mas ajudávamo-nos uns aos outros."

Na simplicidade, encontramos a maior riqueza da humanidade. Não há ocasião em que volte às Alcáçovas que não sinta o sabor daqueles rebuçados a derreter na boca.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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