O conceito de estabilidade política e a questão social

Governar contra o povo é o principal fator de instabilidade política. E a estabilidade política pode ser assegurada por um governo minoritário de deputados.

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Na sequência dos últimos resultados das eleições legislativas de 10 de março, muitos construtores de opinião, dirigentes partidários, governantes, ex-governantes, Presidente da República e jornalistas têm-se pronunciado com frequência sobre o conceito de estabilidade política.

Estabilidade política significa dispor de condições para governar com paz social e sem constrangimentos maiores, que possam condicionar a ação do Governo. Ninguém deseja uma crise política, ninguém gosta de brincar às eleições, ninguém quer acrescentar à desordem ambiental, social e económica a desordem política.

Sem maioria absoluta na Assembleia da República, o atual Governo da AD é frágil. Tornar-se-á ainda mais frágil, se governar contra o povo. Eu sei que agora não se utiliza a expressão povo, utiliza-se a palavra "eleitores".

Governar contra o povo é o principal fator de instabilidade política. E a estabilidade política pode ser assegurada por um governo minoritário de deputados. Para que essa estabilidade enfrente e vença todas as oposições, boicotes, birras, golpes de baixa política e mentiras refinadas não é necessário pronunciar alto todos os dias no Parlamento as palavras compromisso, responsabilidade, sentido patriótico. É preciso, sim, utilizar o poder resultante da eleição para resolver os problemas que matam a felicidade da esmagadora maioria dos portugueses.

Estabilidade é ter salário digno para pagar a casa e abastecer o frigorífico. Estabilidade é não esperar três anos para fazer uma cirurgia no SNS. Estabilidade é não ver o meu irmão emigrar para conquistar no estrangeiro uma vida digna e um salário justo. Estabilidade é saber acolher com respeito e dignidade os imigrantes. Estabilidade é ter professores motivados, com salários dignos e atualizados, a trabalhar perto de casa.

Eu sei que existe muita gente que acha que estabilidade política deve ser só e apenas estabilidade governativa. Deixar trabalhar com todas as condições quem ganhou as eleições. Respeitar a vontade dos eleitores.

No caso concreto, este Governo precisa de estabilidade política para concretizar um programa ideológico e de classe. Quem beneficia, então, com esta estabilidade? Os grandes grupos económicos, os detentores do grande capital, os que querem acumular de forma rápida e facilitada mais lucros.

Dizem alguns defensores desta estabilidade política que, em tempos passados, com outra configuração parlamentar, foi possível assegurar esta estabilidade política com entendimentos, acordos e compromissos políticos entre o PS e o PSD. É verdade. Essa estabilidade política existiu e funcionou muito bem para concretizar políticas contra o povo. Eu lembro-me desse namoro e desse casamento tão apaixonado, quando PS, PSD e CDS se amavam. Com esse amor, que não era platónico, conseguiram destruir o setor empresarial do Estado, privatizar de forma criminosa empresas estruturantes para a economia do país. Houve estabilidade política para tudo, para mexer na Constituição, para desproteger os trabalhadores com os novos códigos do trabalho, para hipotecar a soberania do nosso país junto das instituições europeias.

O comentário político vai continuar a insistir nesta ideia de que precisamos de um governo que dure quatro anos, de que precisamos de dar oportunidade a quem chegou agora e quer fazer diferente e melhor, de que o país precisa de mudar e de reformas estruturais.

Quando ouço estas opiniões veiculadas sempre pelos mesmos fico sempre cheio de dúvidas e incertezas. Quatro anos de estabilidade política para este Governo concretizar o quê? Para privatizar rapidamente a TAP? Para voltar a dar dinheiro dos meus impostos aos proprietários dos colégios privados? Estabilidade política para continuar a manter salários miseráveis na função pública e nas empresas privadas? E para os proprietários das casas ganharem cada vez mais com a especulação imobiliária? E para privatizar as funções sociais do Estado? E para baixar impostos aos grandes grupos económicos? E para retirar direitos e acentuar a desproteção laboral dos trabalhadores? E para manter pensões e reformas miseráveis, enganando acerca do valor das pensões para 2028 com truques técnicos como o Complemento Solidário para Idosos (CSI)? Estabilidade política para implementar a prestação social única no combate à pobreza e exclusão social?

A eficácia no combate à pobreza não se concretiza com expedientes administrativos. A complexidade de acesso às prestações sociais é um facto. A burocracia que carateriza os serviços do Estado, a falta de informação dirigida aos potenciais beneficiários e o tempo de espera para se obter resposta da Segurança Social são indicadores preocupantes que é urgente resolver.

A provedora da Justiça tem desenvolvido um trabalho notável de defesa destes cidadãos, através das suas constantes recomendações ao Governo e à Assembleia da República. A simplificação de acesso e no processamento das prestações sociais é uma medida positiva. A reestruturação digital dos serviços da Segurança Social com o apoio das verbas do PRR também é de aplaudir. Mas não é com marketing político que se resolve a vida das pessoas. Não é com a junção de vários apoios na prestação social única que se combate, de forma séria, a exclusão social.

Para retirar mais de 700 mil pessoas da situação de pobreza em Portugal, no ano em que se comemoram 50 anos da Revolução de Abril, é preciso muito mais. É preciso mais meios e recursos dos serviços públicos, um aumento digno do valor das prestações sociais, facilitar o acesso eliminando condições restritivas injustas, afetar recursos financeiros do Estado suficientes para garantir a sustentabilidade do sistema, assumir definitivamente que esta função de proteção deve ser da responsabilidade do Estado e não dos privados. Em suma, é preciso respeitar a vulnerabilidade social dos utentes que precisam de alargar direitos e que não sobrevivem com esmolas.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico.

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