Agora que o meu avô perdeu a memória, o meu avô desapareceu?

Diz-se que a maioria do corpo é composto por água, mas eu acho que é composto por memórias. Mesmo que elas sejam confusas, enganadas, rabiscadas, se não forem as memórias, o que habita o nosso corpo?

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"Quase tudo o que sou são as minhas memórias, mesmo que estejam presas por uma ponte de corda muito frágil" Ilustração: Rita Lagarto
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Está a cara da Winona Ryder no corpo da minha antiga professora da escola primária, no meio de uma ponte de corda, com a boca escancarada sem conseguir emitir um som, enquanto o MacGyver tenta desarmadilhar o cronómetro de uma bomba em contagem decrescente: 10… 9… 8... A Winona Ryder com um giz na mão desata a gritar: “Sara!!! Sandra!!! Laura!!! Lara…" Isto é um microssegundo da minha memória: uma imagem-flash que acabou de ocupar todo o espaço disponível no meu cérebro. Estou num evento profissional importante, institucional, e um rosto extremamente familiar ao qual eu deveria ter imediatamente associado um nome, aproxima-se na minha direção de braço estendido para um aperto de mão, numa trajetória inequívoca para vir falar comigo, e eu não me recordo do nome da pessoa em questão…

Enquanto isto acontece, eu vejo a minha mão direita a iniciar um aceno na direção dela, e a minha língua a querer soltar um cumprimento, a voz a lutar por romper a garganta, enquanto dentro da minha cabeça oiço os berros: "Carla!!! Não… Clara!!! Carolina!!! Cláudia!!! Isabel…" Os meus dedos estremecem, os dedos do MacGyver estremecem enquanto olha para o cronómetro dentro da minha cabeça: 7… 6… 5… Ela está quase a chegar, sorri, amistosa, em grande plano no meu campo de visão, e diante da minha córnea uma lista de nomes corre frenética, como os créditos acelerados no final de um filme em letras pequeninas: "Célia, Vanda, Cátia, Rute, Dora, Graça, Leonor, Rute, Raquel…"

O MacGyver não tem hipótese, está entalado, eu não tenho hipótese, vai explodir-me nas mãos a granada, uma bombinha de mau-cheiro. Ela está a três centímetros dos meus dedos trémulos, com o seu pulso firme de Programadora-curadora-pessoa-influente-que-move-uns-dinheiros-para-apoiar-a-Cultura, e já me contratou, disso lembro-me perfeitamente, e eu a sentir uma sílaba a querer escorregar-me da boca, está mesmo na pontinha da língua, na traseira dos dentes… Sinto um apelido incompleto a escorrer-me na testa, em forma de gotinha: 3…2…1… Tenho de arriscar… Tenho de arriscar… “Winona!!!”, sai-me pela boca. BOUMMMMM!!! O som do desabamento da ponte de corda, da minha carreira profissional e da minha dignidade pessoal. “Winona?!” Ela ri-se… Acha que foi uma piada, uma excentricidade, coisas de artistas, dá-me dois beijinhos nas bochechas a ferver, graças a Deus ainda há pessoas que não levam o seu nome a sério…

Dizer que tenho memória fraca é dizer pouco. A minha memória é mais que fraca: é irrequieta, distraída, fluida, inconstante, desobediente, rebelde, caprichosa, indomesticável… Não me lembro dos nomes, dos apelidos, das datas, dos horários… Não me recordo se deixei o forno aceso, a comida ao lume, o aquecedor ligado, onde deixei a chave do carro, onde deixei o carro, onde meti a chave da porta de casa…

Fechei a porta sequer? (E se entra alguém? O que lhe vou dizer quando chegar à minha sala de estar, e encontrar um desconhecido refastelado no meu sofá a comer a minha comida, a usar o meu comando da televisão, tapado com o meu cobertor, porque tenho uma certa fraqueza de memória e deixei a porta da minha casa escancarada e deixo entrar pessoas que já não sei se fui eu que convidei, ou se se fizeram de convidadas?). Não me recordo de números, de matrículas, das marcações, de prazos de pagamento, de recebimento… “Em que ano terminou o curso?” Francamente não sei. Preciso de fazer as contas e também nunca fui espetacular a matemática.

Mas sei de cor o poema do Fernando Pessoa que li primeira vez, quando era pequena, no meu primeiro livro de poesia:

A Ibis, a ave do Egipto pousa sempre sobre um só pé,
o que é esquisito. É uma ave sossegada…
Porque assim, não anda nada.

Não era o poema mais impressionante, nem o mais bonito, nem o mais feliz, nem o mais triste, mas, curiosamente, foi o que ficou colado na minha memória.

Dizem que as nossas memórias são sempre mentirosas, deformadas. E que às vezes até são hipócritas, viciadas, inventadas, iludidas, cor-de-rosa, romantizadas. Memórias fabricadas, modificadas, alteradas (transgénicas?) já que não há ninguém a fazer a fiscalização, o controlo de qualidade, ou antes, de autenticidade.

As imagens e as recordações que temos de nós mesmos e dos outros, são sempre editadas, e de cada vez que as revisitamos lá estão elas a ser armadilhadas pelo tempo, transformadas pelo ato de recordar. Como uma pintura original, adulterada pelos bocadinhos de tinta que vamos acrescentado de cada vez que a reparamos, pelos traços que reforçamos, enquanto pisamos outros que se vão apagando… Como quando éramos pequenos e pintávamos num livro com gravuras muito perfeitinhas a preto e branco e as esborratávamos com as nossas cores, saltávamos as linhas, pincelada sobre pincelada, a fazer desaparecer o que estava em baixo, até aquilo que se vê, já não ser nada do que se esconde debaixo das camadas de aguarela, óleo, giz, carvão, cuspo, suor, lágrimas…

Tenho sempre a impressão de que as minhas memórias ficam guardadas num cantinho entre as pálpebras e as têmporas… Num saquinho fundo que não é o saco lacrimal, e onde cabem muitas coisas, entre as quais a cara da Winona Ryder, a música do genérico do MacGyver, e a saia travada com collants de vidro da minha professora da primária… Se fechar os olhos vejo melhor. Se chorar as memórias inundam-se e às vezes algumas estragam-se… Mas outras resistem: imperfeitas.

Lembro-me de estar parada em frente ao Bloco C no 7.º ano, lembro-me de estar a chover, lembro-me dos meus botins vermelhos, do meu relógio lilás, de ouvir o segundo toque para a aula de Ciências Naturais. Lembro-me de ver o professor a correr ofegante porque era velho e se perdia nos corredores, e de ouvir os meus colegas a fugir e gritar atrás de mim: “Se fores à aula pomos a tua mochila no lixo, e levas porrada lá fora!” E lembro-me de ver os meus joelhos trémulos a entrarem na sala, sobre um pé, como uma Íbis do Egipto com botins vermelhos, a não perceber porque é que eles queriam dar-me porrada, porque eu era uma ave sossegada, e tinha pena de ver um professor tão grande e tão velho a perder-se numa escola tão pequena.

Lembro-me de usar soutien pela primeira vez e de trazer uma camisola amarela com um girassol desenhado, e do girassol crescer de dia para dia sobre o contorno do meu peito, e de eu encolher as costas como uma tartaruga, porque era esquisito que o meu corpo andasse mais rápido que eu, sem esperar pelo meu pensamento, como um batoteiro que corre antes de se ouvir o sinal da partida. E não me lembro em que ano estávamos, mas lembro-me de ver o meu avô fazer ratoeiras, lembro-me das galinhas a correrem no quintal da minha avó, e dela a correr atrás delas para as apanhar, e das mãos do meu avô a afagarem o cabo da faca, e a acariciarem a cabeça da galinha antes de desferir o golpe no pescoço, e da cabeça da galinha ficar separada do corpo, e de eu pensar que às vezes se acariciam coisas que queremos matar. E de achar que uma festinha na cabeça pode ser o aviso de que a vida é maior que nós, de que o céu é maior que nós.

Lembro-me das urtigas que ardiam na pele como há memórias que ardem na pele. E lembro-me de ver o céu estrelado do terraço do sótão dos meus avós, em cima da casa que só tinha um andar, mas que era um arranha-céus na minha infância, e de achar que as estrelas eram a coisa mais bonita que havia, e sonhar que um dia queria ser astronauta como o Iuri Gagarin, para ver as estrelas a brilhar na sola dos meus pés. E de ter ouvido falar da Laika que foi a primeira cadela a ir ao Espaço… E juro (eu juro!) que me lembro de ter visto um foguetão a passar com a Laika sobre o terraço dos meus avós, e da imagem ser tão real quanto a imagem dos sapatos concretos do meu avô a bater no chão enquanto torcia os arames das ratoeiras.

Lembro-me de que o meu avô ficou doente, não porque tenho uma memória de o ver cansado ou débil, mas porque me lembro dos sapatos dele em biquinhos de pés: porque quando as lembranças dele começaram a voar como pássaros, ele começou a brincar aos trapezistas como as crianças, e andava sempre nas pontas dos dedos dos pés, como se estivesse em cima de uma linha imaginária, no circo, a fazer equilibrismo em cima das nossas cabeças. A sorrir para as pessoas cá em baixo, a sorrir para nós, para o resto da família, que estávamos colados à terra, a vê-lo flutuar aos pouquinhos. A vê-lo largar as memórias que ia subindo, a esvoaçar na direção das estrelas como balões de ar quente cheios das memórias, que ele deixava escapar do corpo, que se ia esvaziando cá em baixo. Lembro-me de me perguntar: “Agora que o meu avô perdeu a memória, o meu avô desapareceu?"

Diz-se que a maioria do corpo é composto por água, mas eu cá acho que é composto por memórias. Porque mesmo que elas sejam confusas, enganadas, rabiscadas, se não forem as memórias, o que habita o nosso corpo?

O corpo muda: cresce, mirra, abunda, envelhece. As casas trocam-se, vendem-se, compram-se, arrendam-se, a família cresce e encolhe, o mundo gira, mesmo que por vezes pareça girar em rotações que o retrocedem, e dizem os neurocientistas que o cérebro é como um desenho vivo que se altera a cada segundo, a cada pensamento. Eu não sou certamente a mesma rapariga que era ao entrar na escola de camisola com girassol no peito, mas quase tudo o que sou são as minhas memórias, mesmo que estejam presas por uma ponte de corda muito frágil.

Por isso, agarro-me a elas com as mãos bem abertas, arrumo-as e desarrumo-as para as acomodar melhor, constantemente, em imagens, em letras que correm e fogem, em fotografias dentro dos meus olhos, que são mais verdadeiras que as que tenho nas molduras. Tenho pinturas de memórias que não sei porque guardei: não são as mais impressionantes, nem as mais bonitas, nem as mais felizes, nem as mais tristes. Mas não desaparecem. E eu passeio nelas, em biquinhos de pés.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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