Ditadura: medo até de pensar
António Jorge Gonçalves recorda a infância durante a ditadura, quando na sala de aula todos viam outro António.
Dita Dor é um livro autobiográfico. Há já uns anos que António Jorge Gonçalves queria escrever e ilustrar um livro em que falasse da sua infância. Algumas leituras sobre a vida das mulheres naquela época cimentaram essa vontade de “denunciar” com a sua própria voz injustiças, absurdos e medos no período da ditadura. O autor tem 59 anos.
“Queria mostrar à minha filha o país triste e severo em que nasci”, conta ao PÚBLICO. E acrescenta: “O livro nasce da tensão de na altura não se poder fazer perguntas. A minha filha sempre pôde fazer perguntas. Quero que ela tenha consciência dessa grande diferença.” Recorda que os seus pais “só começaram a falar sobre muita coisa no pós-25 de Abril, viviam num espartilho”.
Por isso, sente-se “grato pela proposta” para integrar a colecção Missão: Democracia, editada pela Assembleia da República. “Ajudou-me a ter este foco.”
Inicialmente, sentiu “apreensão por ser um livro para miúdos”, lembra. “A questão com as crianças é ser directo nas coisas a contar. Ir ao osso…”, relata e fala de como “os constrangimentos (número de páginas, formato, público-alvo) fazem a obra”.
Valeram-lhe alguns conselhos da jornalista e escritora Susana Moreira Marques: “Ela disse-me: ‘A chave está no lugar onde te posicionas.’ E obrigou-me… a contar a história em 10 mil caracteres: ‘Escreve e não procures dar certezas’.” Resultou.
A novela gráfica é contada na primeira pessoa, um miúdo de nove anos chamado António, nome igual ao seu e ao do ditador. “Sou aquele rapaz, coloquei-me na perspectiva daquele miúdo.” Recorreu a memórias pessoais e a outras que lhe foram contadas por vários familiares. Lembra-se de um jantar em que estavam nove primos: “Havia muitas versões diferentes para a mesma história.”
Dar uma visão da infância
O livro começa com a família à janela, em Lisboa. Pais, irmãos, avó e madrinha. “Calados, olham para a linha férrea de Entrecampos através da parede envidraçada. Vêem passar o comboio onde segue o caixão do ditador António Salazar.”
O texto é registado em cursivo, com a própria letra de António Jorge Gonçalves, o que remete também para a infância e ajudará na leitura por parte das crianças do 1.º ciclo. “Quis que fosse assim.” Boa opção.
Na parte da ilustração, fez por dar uma visão da infância, “nada naturalista ou neo-realista”. E diz ter seguido a premissa: “Coisas que a imagem não nos revela.”
Está certo de que quem o conhece vai vê-lo ali, mas também está receoso da opinião dos pais e irmãos, já que são personagens do livro: “Não tenho a manha literária da dissimulação.” Espera, portanto, uma espécie de “aprovação familiar”.
Em termos técnicos, o procedimento foi “desenhar com marcador analógico e aplicar a cor em computador”. A sua primeira versão era totalmente analógica, “mas era muito soturna, esta é mais leve”. A decisão de avançar com esta última foi tomada em conjunto com a filha, Miranda, 15 anos, aluna da Escola Artística António Arroio.
Felicita a colecção Missão: Democracia (que terá 12 títulos), dizendo que souberam “rodear-se das pessoas certas”. O livro foi lançado no passado dia 17 de Abril, no Palácio de São Bento, mas terá novas apresentações neste sábado, às 16h, na Biblioteca Municipal de Sintra, Casa dos Hipopómatos, e no domingo, às 16h30, no Penhasco, em Lisboa.
O também cartoonista e designer, que recebeu o Prémio Nacional de Ilustração em 2013 com Uma Escuridão Bonita (texto de Ondjaki, edição da Caminho), conclui sobre Dita Dor: “Tenho a sensação de esta ser uma das melhores coisas que já fiz.” É capaz de ter razão.