Nicolas Floc’h pôs todas as cores do Tejo dentro do museu
Exposição do fotógrafo francês no MAAT usa a cor e o preto e branco para nos aproximar do universo dos rios e dos oceanos. “Costumo dizer que não vivemos numa casa, vivemos num planeta”, afirma.
No meio da cor total da fotografia descobre-se uma medusa, é o rio Tejo que a oferece: o verde da água não é só verde, é o verde do fitoplâncton, são, algumas tonalidades abaixo, os contornos esbranquiçados daquele animal. Em A Cor da Água – Rio Tejo, o fotógrafo francês Nicolas Floc’h coloca o visitante diante de uma grelha de 340 fotografias distribuídas ao longo de 34 colunas. O resultado é uma paleta de cores que vai do laranja acastanhado até ao azul esverdeado ou de Castanheira do Ribatejo até ao início do Atlântico, como se preferir.
A obra maior da nova exposição Mar Aberto, de Nicolas Floc’h (n. 1970), com curadoria de João Pinharanda, patente ao público a partir desta quarta-feira no Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia (MAAT), em Lisboa, é um documento das cores de um rio a entrar no mar, ao longo de vários quilómetros, a várias profundidades. É um documento do encontro da luz com a água, as suas substâncias dissolvidas, os seus animais – quando se mostram. É, por isso, um pedaço de paisagem, um pedaço de mundo.
“Quando vejo uma cor, vejo muitas ligações”, diz o fotógrafo francês ao PÚBLICO, referindo-se ao seu trabalho. “Existem cores fortes, infinitas nuances de cor, que estão ligadas a muitas situações. Mas é o oposto de uma paleta de cores Pantone. Tudo isto são situações específicas, são partes da realidade. Não é só um pigmento, não é só extracção. É pigmento, mas no seu ambiente dinâmico. O Pantone pode ser pigmento, mas diria que é quase pigmento morto. É estático. Aqui, é totalmente dinâmico, pertence a um processo da vida.”
Vermelho de floresta
Nicolas Floc’h já fotografou as cores das águas dos rios Loire e Sena, em França, e do Mississípi, nos Estados unidos, cuja enorme bacia hidrográfica se estende do Golfo do México ao Canadá. Na nova exposição, há cinco fotografias em sequência vindas de águas dessa bacia, são cinco cores diferentes: branco, vermelho, amarelo, verde e azul.
A fotografia branca foi tirada a um metro de profundidade no rio Cheyenne, no Dacota do Sul. A vermelha foi obtida à mesma profundidade, mas já no rio Mississípi, no Minnesota. Nicolas Floc’h, que ao longo dos anos foi aprendendo o significado das cores da água, associa o vermelho à ocorrência de taninos, moléculas existentes na folhagem e na casca das árvores. Por isso, o vermelho do rio é um vermelho vindo da floresta, demonstra uma ligação. Nesse sentido, a geologia, a agricultura, a ocupação humana, tudo o que acontece em terra vai alimentar a cor das águas dos rios e, por sua vez, dos oceanos.
“No Mississípi, quando o rio está a ir para o oceano há uma sequência que vai do vermelho, ao laranja, ao amarelo, ao verde, ao azul. É a sequência que se pode encontrar no arco-íris ou na organização física das cores. Mas aqui não é uma questão óptica, é geográfica. É todo aquele ciclo vivo e não vivo a interagir”, explica Nicolas Floc’h.
No caso do Tejo, a paleta de cores não é tão perfeita. O fotógrafo realizou o seu trabalho ao longo de três dias, em 2022, numa residência a convite do MAAT; tirou fotografias a 34 pontos que distavam entre si 2,7 quilómetros. Em cada ponto, Nicolas Floc’h obteve 12 imagens da coluna de água a profundidades diferentes (para a exposição só entraram dez das 12 fotografias de cada coluna), usando sempre uma grande angular e a luz natural que penetra na água.
Enquanto na coluna mais a montante, em Castanheira do Ribatejo, a distância entre fotografias era de centímetros, devido à turbidez do rio (ali, com poucos metros de profundidade), com resultados que variam do castanho ao laranja quase encarnado, já nos últimos pontos, no Atlântico, as fotografias de cada coluna distam vários metros entre si, num azul intenso que por vezes clareia para o verde. São paletas tridimensionais, abarcam volumes de água marinha, frequentemente vazios.
“Tenho milhares de fotografias do oceano, em diferentes ambientes. Quase nunca têm peixes”, diz Nicolas Floc’h. As várias medusas avistadas à entrada do rio Tejo, não muito longe do MAAT, trazem por isso um brilho próprio, dão um tom concreto à paisagem. “É a primeira série de A Cor da Água onde há coisas que se podem claramente identificar e acho isso interessante. Porque parece tudo abstracto e de repente apercebemo-nos de que são fotografias. Estou muito feliz que elas estejam ali”, acrescenta o fotógrafo, que vai jogando com o visitante e as suas ideias do que separa fotografia e pintura, paisagem real e mundos imaginados, natureza e arte.
Num dos textos que acompanham o catálogo da exposição, da académica Teresa Castro, é apontada a qualidade política de A Cor de Água. “As histórias materiais evocadas pela série são uma forma de politizar actantes não-humanos e mais-que-humanos, isto é, de os trazer para a nossa pólis, o nosso espaço de discussão sobre a vida colectiva. Desse ponto de vista, as ‘paisagens da cor’ são paisagens políticas”, escreveu a especialista em estudos cinematográficos da Universidade Sorbonne Nouvelle.
Um mundo estranho e familiar
Nicolas Floc’h liga a questão política com o seu trabalho de uma forma mais ampla. Uma parte importante da obra exposta são fotografias a preto e branco do fundo do mar. A ligação de Nicolas Floc’h com o mar é antiga. Aprendeu a fazer mergulho muito cedo e chegou a trabalhar num barco pesqueiro antes de passar pela Escola de Artes de Glasgow, onde trabalhou com escultura, instalação e performance. Para o fotógrafo, o oceano é um ambiente pouco representado tanto no imaginário das pessoas, como nos próprios museus, e essa preocupação faz parte de um olhar sistémico sobre a vida na Terra – a água cobre mais de 70% da superfície do planeta.
“Acho muito importante tornar este território mais presente [nos museus] para que possamos compreender que estamos ligados a estes espaços. Por isso, estou a trabalhar em relação a esta paisagem, mas também em relação a este ambiente onde vivemos, que é amplo, não é um edifício, uma cidade, é um ambiente interconectado. Costumo dizer que não vivemos numa casa, vivemos num planeta”, afirma.
Algumas das fotografias foram tiradas na Bretanha, outras nos Açores, com a parceria do Arquipélago – Centro de Artes Contemporâneas, dos Açores, outras ainda foram obtidas em maior profundidade, com ajuda de robôs. Em todas elas, o fotógrafo usou uma grande angular para captar as imagens que depois foram reveladas a preto branco, métodos que afastam estes objectos das cores exóticas dos trópicos e das fotografias da vida selvagem. Exceptuando as que foram feitas em profundidade, todas as fotografias recorreram apenas à luz natural.
O resultado são paisagens ricas em texturas: dunas que se espraiam no fundo marinho, florestas de algas que levitam ondulantes, abismos de rochas, a superfície da água que, vista de perto, parece um fino tecido de crateras lunares.
“O preto e branco não contém o exotismo da fotografia a cor, ficamos neste ambiente estranho, que é ao mesmo tempo diferente e familiar. É também uma referência à fotografia da paisagem, desde a natureza nos Estados Unidos, passando pela [exposição] New Topographics, aos [Bernd e Hilla] Becher [que se dedicaram às paisagens industriais]… Tudo isso foi feito em fotografia. Mas debaixo de água não há fotografia de paisagem, não há nada”, explica o francês, assumindo um diálogo com aquele legado da fotografia e da arte.
Há ainda três vídeos daquele universo oceânico e uma série de fotografias de construções submarinas feitas pelo homem, para albergar corais, que Nicolas Floc’h fotografou no Japão, em França e até em Portugal. São estruturas arquitectónicas estranhas, transformadas pelos organismos vivos, que misturam imaginários de cidades abandonadas com ficção futurista. Por vezes, surgem no meio de uma névoa, quase espectrais. Mas o fotógrafo trouxe-as para a realidade concreta da exposição, ao construir modelos pequenos daquelas estruturas, dando mais um passo para nos aproximarmos deste (nosso) mundo.