Postal de Fátima: fé e turismo

Sou devoto das pessoas. A condição humana é a minha religião.

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O Santuário de Fátima fica na Cova da Iria Nelson Garrido
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Estacionei em frente ao hotel em Fátima onde havia reservado um quarto e dirigi-me à receção. O simpático e eficiente rececionista demorou menos de dois minutos a registar a minha entrada. Eu sei que toda a gente diz check-in, mas havendo substituto em português, prefiro escrever assim.

Subi para o quarto. No elevador, espantei-me com uma fotografia da Cova da Iria em 1949, onde se vê a Basílica de Nossa Senhora do Rosário, o Monumento ao Coração de Jesus, um altar no local onde se encontra hoje a Capelinha das Aparições, oliveiras, terra, pedra e um carril estreito – presumo que seria utilizado para retirar pedra do local.

Poucos minutos depois, encontrava-me na Cova da Iria a jogar às diferenças com a fotografia de 1949 aberta no telemóvel. Quem te viu e quem te vê, Fátima. O santuário estava calmo, pelo que aproveitei para dar uma volta e observar as pessoas. Sou devoto das pessoas. A condição humana é a minha religião.

Um casal com um miúdo dirigiu-se a mim. A senhora pediu-me, em inglês, que os fotografasse. Posaram. O miúdo inclinou a cabeça e ensaiou alguns gestos de hip-hop com as mãos. A mãe soprou-lhe, zangada. Não conheço a língua, mas soou-me a ralhete de leste a pedir respeito pelo lugar. O pai manteve-se imóvel, sempre a sorrir. Voltaram a posar. O miúdo piscou-me o olho, sorriu e encolheu os ombros. Retribui o sorriso. Como não?

Continuei o périplo. Duas freiras foram abordadas por casal na casa dos 60 que se fazia acompanhar por uma senhora mais velha – seguramente a mãe da senhora mais nova, as semelhanças não deixavam dúvidas. A senhora mais jovem indagou, em francês, as freiras sobre a localização da Capela do Santíssimo Sacramento (conhecida por «Capela do Silêncio»), um lugar onde, há mais de 60 anos, um grupo de crentes (e de inquietos não religiosos: já por lá passei) se reveza, de hora a hora ou de duas em duas horas, para rezar e refletir. As freiras responderam em polaco (tenho quase a certeza disto) e gesticularam negativamente.

A senhora virou costas sem agradecer e dirigiu-se, indignada, à mãe e ao homem (marido?): «não falam francês, acreditam?».

Acredito. Parecem ser polacas. Talvez tentando em polaco?

Uma criança gritou. Num lugar tão sossegado, um grito faz virar cabeças. Um homem apressa-se, atrapalhado, a pousar a mochila e a tirar um biberão que entrega à criança. Ao ver-me de máquina fotográfica apontada para ele, sorriu para mim. De seguida, dirigiu-se à criança e deve-lhe ter dito que me dissesse adeus, pois foi o que a menina fez a seguir, também a sorrir. «Uns têm fé, outros sede», pensei.

– De onde vêm? – perguntei.

– Turquia – respondeu o homem, em inglês.

Vi meia dúzia de pedintes no Santuário. Estrangeiros. Pareceu-me que falavam romeno. Uma das pedintes foi convidada pelo segurança a sair da zona onde se queimam as velas. Saiu. A resmungar, mas saiu. «As pessoas não vão a Fátima por causa dos pobres. Pobres e desempregados há por todo o país e cada vez mais. Os peregrinos - não falo dos turistas - vão cumprir uma promessa, pedir consolação e auxílio, procurar a paz interior. E como já foi desqualificado o negócio da velha sabedoria - "quem dá aos pobres empresta a Deus!" - os pedintes estão sem discurso religioso que os proteja», escrevia Frei Bento Domingues neste jornal a 27 de julho de 2003. (O meu arquivo de textos organizado por temas é um dos meus melhores amigos)

Hora de jantar. O restaurante do hotel encheu-se de coreanos, que comeram sem rebuliço. Impressionante como tanta gente (à volta de 50 pessoas) pode fazer tão pouco barulho enquanto comem, bebem e convivem. Numa outra mesa, um grupo de cerca de 20 holandeses cantou para agradecer aos empregados do hotel o acolhimento de uma semana. Os coreanos aguardaram o fim da cantoria para abandonarem o restaurante levando na mão uma merenda para o pequeno-almoço. Soube que iam deixar o hotel às 4h30.

Às quatro da manhã, acordei com o alarme de incêndio. Mantive-me deitado, na esperança de que fosse falso alarme. Ao fim de cinco minutos, ouvi falar em coreano no corredor e sentei-me na cama. O alarme calou-se pouco depois.

Ao pequeno-almoço, enquanto quatro espanhóis faziam mais barulho do que os 50 coreanos da véspera, um dos empregados confidenciou-me que o alarme disparara quando uma coreana usara o seu próprio secador para secar os longos cabelos debaixo do detetor de incêndio.

Deixei Fátima pouco depois do pequeno-almoço, ainda mais devoto das pessoas e da abundância da minha religião.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990.

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