O Coração Ainda Bate. As linhas do riso

Inês Meneses fala sobre a importância do riso.

Não me lembro de rir em miúda. Até porque não havia muita gente à minha volta. Precisamos dos outros para chegar a nós. No riso é a mesma coisa. Hoje rio-me facilmente sozinha: em silêncio ou até ruidosamente, mas faço-o porque o pratico. Porque outros o fizeram comigo. Porque há amigos com quem me rio todos os dias. Procuramo-nos também com esse intuito. Não tememos fazer parte do riso dos outros. Sentirmo-nos amados ajuda muito.

Rir também foi uma coisa vedada às mulheres. Tolas as que se riam muito. “Muito riso, pouco sizo”. Ouvi a frase vezes sem conta. Ainda hoje um amigo me dizia que à irmã pediam para tapar a boca quando se ria. Eram poucas as coisas que uma mulher de bem pudesse fazer e rir-se – como os homens sempre fizeram – não seria certamente uma delas.

Ter crescido mais sozinha, até me rodear dos certos, deu-me a dose necessária de sofrimento, que mais tarde veio a desaguar em humor. Aprendemos a rir num território adverso. O tempo tem de nos cavalgar para percebermos que onde houve dor pode haver agora qualquer coisa, até absurda. O absurdo é um lugar onde faltam respostas, mas não o humor. Podemos rir no futuro do que está passado. O presente nem sempre nos dá tempo para rirmos com consciência. Por exemplo, não me rio da inocência que presencio agora, mas poderei rir-me mais tarde quando já disser: “fui tão inocente!”. Ter essa capacidade de olhar para trás e desfazer um punhado de nós em riso pode mesmo salvar-nos. Até quando nos pareceu que jamais ultrapassaríamos aquele momento de dor.

O humor, todos sabemos, pode ser uma defesa. Um ataque premeditado que nos faz ganhar tempo ao agressor. Muitas mulheres aprenderam a rir delas próprias antecipando o escárnio colectivo: porque eram gordas, porque não tinham namorados, porque usavam óculos, porque tinham pelos a mais, porque já tinham o período, porque nunca tinham dado um beijo. Muitas raparigas jogaram tudo nessa antecipação. Mais tarde, o tal amor, o amor verdadeiro, salvou-as. Outras guardaram dissabores que nunca mais foram desembrulhados e permaneceram tristes. O humor também surge muitas vezes como um disfarce. Podemos viver debaixo dessa capa muitos anos.

Hoje em dia passo muito tempo a inventar histórias sem nexo que me fazem borbulhar de riso. Aquilo que gente sem humor verá como desperdício, como tempo gasto, que podia ser rentabilizado de outra forma. Tudo se rentabiliza – aparentemente. Eu vivo no desperdício do riso que me salva e salvará outros como eu, nem que seja momentaneamente.

Não deixa de ser curiosa esta era tão superficial e onde, ao mesmo tempo, as pessoas se levam muito a sério. O botox apaga-nos as marcas do riso e impede que a boca ganhe vida própria. Se eu tiver a sorte de envelhecer, quero que no meu rosto estejam impressas as linhas do riso. A cara escalavrada pelas piadas que contei e que me contaram. Os momentos em que fiquei suspensa numa gargalhada e a minha filha ficou feliz de me ver assim. Ela também se ri por me ver aflita no meu humor incontinente. E pega-se. O humor, como sabe quem o pratica, é contagioso. Propaga-se de uma forma quase insensata, mas salvífica.

Há dias assisti ao momento em que alguém ficou a tentar perceber uma piada sem nunca lá chegar. Mesmo com ajudas. Mesmo com a explicação que acabou por retirar à piada o seu propósito. É assustador ver alguém que parece bonito perder de imediato a sua beleza quando não riu. Como se o humor fosse uma coisa divina. Talvez seja. Divina por ter sido um equipamento com o qual nem todos sabem funcionar. É um botão mesmo ao lado da inteligência, que só faz sentido quando ambos estão ligados.

A falta de humor condena-nos. São ainda mais carregados os dias que não precipitam o riso.

É uma coisa divina, não tenho dúvidas.

Quero viver para sempre perdida de riso, sabendo que no humor encontro a minha salvação diária. Até nos dias sem piada.

O coração ainda bate.

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