O Coração Ainda Bate. Sem aviso

Inês Meneses escreve sobre os receios que limitam o amor.

A conversa do almoço seguiu por um caminho que me agrada e me prende à mesa (ou onde estiver): de que forma o amor nos salva? Como, na falta dele, podemos ir além das nossas circunstâncias? Esta questão das nossas aparentes limitações persegue-me desde sempre ou não teria chegado aqui sem equacionar, vezes sem conta, o meu passado.

Ao almoço, num domingo de céu turvo, com os pássaros em bando a grasnar como patos, e as velas acesas (alumio o cenário por me aconchegar) fui descendo, uma vez mais, por este tema: por que razão uns se sobrepõem aos seus limites e outros se escudam neles para não avançarem? Como se a vida fosse uma permanente ofensiva. E talvez seja. Por que razão pessoas que conheço tão bem nunca se deixaram ser amadas? A questão não é por que não foram amadas? A questão é mais por que razão boicotaram essa possibilidade de serem momentaneamente felizes?

Quem está sozinho facilmente reclama da solidão e quem permanece acompanhado dificilmente não se queixa da falta de liberdade. Isto devia fazer parte dos manuais - para não acharmos a nossa existência ainda mais complexa.

Dos que me acompanham e sigo com amor e cuidado (também se aprende esse cuidado com a idade), há muitos que estiveram a um fio, um frame, um segundo, de serem felizes. Estiveram quase. Foi quase. Ficou aquém. Houve ali um momento em que alguém que parecia quase assemelhar-se a ser metade de um par se aproximou, mas nos fez parecer que era insuficiente ou estava a mais: uma chama que nunca aqueceu o suficiente para ser fogo. Um morno que nos fez olhar com ternura para o outro, mas que não chegou para acordarmos de manhã com vontade de mudar de vida. Eu acho que a vida está certa quando a queremos mudar muitas vezes. Nem que seja clandestinamente. Em fantasia. Num hobby inexplicável, que apenas nos decifra a nós próprios e nunca perante os outros.

Volto então ao amor que nunca foi sequer metade de um par, mas uma coisa confusa: queríamos muito, mas não o suficiente. Éramos insuficientes, mas não queríamos passar para lá do quase. Que medo nos faz o quase. Por nos parecer muito!

Muitas das amigas e dos amigos que parecem ter boicotado o amor fizeram-no tantas vezes porque recearam que o todo fosse pouco. Que o muito não fosse suficiente. Volto ao manual: o amor devia ser explicado como algo que pode nunca ser avassalador à primeira, mas que pode ser construído. Vem devagarinho às vezes. Não tem de queimar o alcatrão para nos encontrar. Pode descer em tantas paragens que julgamos nem lá estar quando chegar a nossa vez.

Ao cinema e aos livros – recreio das nossas fantasias – devíamos pedir a indemnização das nossas vidas por nos terem enganado fortemente sobre o amor. Nem retumbante nem incipiente. No meio destes extremos há uma coisa que sei: o amor não floresce porque os nomes são longos ou o solar grande. O amor (aí ainda vou ao cinema) acontece porque as pessoas querem, se riem uma com a outra, uma da outra, e, sim, para voltar ao início disto tudo, se permitem ultrapassar as suas circunstâncias para viver o que nem estava previsto (sendo que ninguém está mandatado para designar quem e o quê pode e deve viver).

A literatura enganou-nos vezes sem conta sobre o amor. O cinema deu imagem às palavras. O dinheiro foi uma acha para a fogueira onde o amor é fogo que arde e se vê.

Quando hoje, décadas depois, as pessoas dizem, amarguradas, que o amor não lhes aconteceu, eu, na realidade, acho que aconteceu, mas não nos moldes gerados pelas expectativas dos outros ou pior: nas expectativas dos próprios.

A maior lição, que nem sequer queríamos ter aprendido, é que o maior, o verdadeiro amor, nunca pode depender de expectativas. Ficamos sempre a perder se dependermos delas. E o amor costuma aparecer sem aviso para nos ganhar.

O coração ainda bate.

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