As eleições e a saúde dos portugueses

De nada vale aumentarmos o orçamento, se não formos capazes de fazer mudanças fundamentais em áreas que têm sido praticamente ignoradas nas sucessivas tentativas de reforma do SNS.

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A insatisfação manifestada pelos profissionais de saúde nos últimos meses é mais do que justificada. Sentem-se desvalorizados e lutam por um Serviço Nacional de Saúde (SNS) mais capaz e responsivo. Acompanhamos as razões dos seus protestos e sabemos que a valorização dos profissionais é (ou deveria ser), a primeira prioridade de qualquer governo.

Os políticos tendem a desvalorizar os argumentos dos profissionais de saúde, respondendo com "o maior orçamento de sempre". Ao mesmo tempo, exigem maior produtividade e eficiência por parte do sector. Ao fazê-lo, demonstram o quão longe estão do problema e, consequentemente, da solução.

De nada vale aumentarmos o orçamento, se não formos capazes de fazer mudanças fundamentais em áreas que têm sido praticamente ignoradas nas sucessivas tentativas de reforma do SNS. Refiro apenas cinco, pelo impacto que têm no funcionamento do SNS: investimentos/despesas de capital; modelo de gestão; retenção de profissionais altamente qualificados; avaliação de tecnologias; e percursos clínicos/organização de cuidados.

1. Nos últimos dez anos, as despesas de capital, designadamente a execução dos valores previstos em sucessivos orçamentos de Estado ronda os 50 %. As infraestruturas, os equipamentos, as condições de trabalho, continuam a degradar-se de forma contínua. Os grandes investimentos, nomeadamente na construção de novos hospitais, continuam sucessivamente adiados. A não construção dos hospitais de Faro, Oeste, Oriental de Lisboa, Seixal, Vila Nova de Gaia, Póvoa de Varzim/Vila do Conde ou Barcelos é apenas um exemplo desta falta de investimento. As despesas de capital no SNS são inferiores a 2 %, o que é manifestamente insuficiente para um sector muito marcado pela rápida obsolescência tecnológica. Não deixa de ser paradoxal que o Plano de Recuperação e Resiliência praticamente não inclua verbas para esta dimensão;

2. O modelo de gestão regrediu, com prejuízo grave dos resultados do SNS. Os hospitais e centros de saúde não têm qualquer tipo de autonomia para tomar decisões operacionais fundamentais, como sejam a contratação de um profissional (com exceção dos médicos) ou a compra de um equipamento. O modelo de governação é pobre e em muitos hospitais portugueses continuam a não existir ferramentas básicas de contratualização interna e acompanhamento da mesma. Dito de outra forma, falta planeamento e controlo de gestão em muitas unidades de saúde, conforme seria expectável num contexto em que a tutela contínua a concentrar as principais decisões de gestão. O Governo responde a isto protelando sine die a revisão da carreira de administração hospitalar, adiada há mais de 20 anos, ao mesmo tempo que continua a clamar por melhor gestão;

3. Os profissionais mais qualificados continuam a ser vistos como meros operários inseridos num esquema de carreiras pré-formatado, ignorando tudo o que sabemos sobre gestão de recursos humanos. A avaliação de desempenho assenta num modelo ultrapassado, que não incentiva os melhores, nem afasta os piores. Persiste o desalinhamento entre os objetivos das instituições e aqueles que fixamos para os nossos trabalhadores. Não valorizamos o conhecimento e a experiência dos nossos trabalhadores mais seniores, profissionais que deveriam ser centrais nas nossas organizações. Insistimos em categorias e quotas de progressão, completamente desligadas do valor que cada profissional acrescenta. Neste tema, como em outros, talvez seja tempo de colocarmos em perspetiva as limitações de gestão que se colocam aos hospitais enquanto entidades pertencentes à esfera publica, procurando aproximá-las do modelo de gestão mais flexível e autónomo que se utiliza no sector privado;

4. A avaliação de tecnologias em saúde continua a ser muito pobre. O SNS investe milhões de euros em novos medicamentos, dispositivos e equipamentos, e depois não mede os resultados em saúde desses investimentos. É urgente começar por garantir que medimos os resultados em saúde das novas terapêuticas, com base em dados da vida real reportados pelos doentes. Só dessa forma se poderá avançar com acordos de partilha de risco (associando os custos aos resultados obtidos), evidenciando, ao mesmo tempo, o valor real de cada fármaco ou tratamento (incentivando dessa forma a verdadeira inovação);

5. Os percursos clínicos dos nossos doentes são os mesmos que tínhamos há 40 anos. A procura não é a mesma, as necessidades e expectativas não as mesmas e os profissionais de saúde também não são os que existiam no passado. No âmbito da reforma em curso no SNS, é fundamental que a integração de cuidados vá para além da mera gestão conjunta de Hospitais e centros de saúde. É necessário criar percursos com novas entidades (farmácias, sector social, municípios, associações de doentes, sector privado), que permitam resolver os problemas dos doentes, incluindo a intervenção em determinantes sociais que são responsáveis por uma parte importante da nossa procura. Não faz qualquer sentido investir milhares de euros no tratamento de um doente no serviço de urgência, devolvendo-o depois a um contexto onde muitas vezes não tem um teto onde se abrigar ou recursos para se alimentar corretamente.

Governo após Governo, vamos renovando a esperança de que um dia venha a mudança de que tanto precisamos. É nesse ponto que nos encontramos agora, na expectativa de que o próximo governo entenda definitivamente a importância deste sector e de quanto pode contribuir para um maior desenvolvimento e coesão social do nosso país.

É fundamental que os diferentes partidos políticos apresentem de forma clara as suas ideias para a Saúde, particularmente no que respeita a estes pontos que constrangem o SNS. Os cidadãos merecem saber em que propostas estão a votar e estou certo de que essa avaliação será importante na definição do seu sentido de voto. Mesmo sabendo que muitas vezes as promessas não passam disso mesmo, é tempo de saber o que propõem os diferentes partidos políticos para o futuro do sistema de saúde português.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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