“Porque é que não denunciaram antes?”: a insuportável (im)perfeição das vítimas

A conclusão é inescapável: as mulheres têm tudo a perder em denunciar.

As notícias dos últimos dias sobre as denúncias de assédio no CES reacenderam o debate em torno do assédio sexual, os meios de denúncia e proteção das vítimas. Volvidos quase seis anos sobre o movimento #Metoo, e passados dois anos do seu momento mais expressivo em Portugal, é possível fazer uma radiografia das reações e resistências dominantes no debate público sobre violência sexual. A conclusão é inescapável: as mulheres têm tudo a perder em denunciar.

Todas/os somos contra a violência sexual como posição de princípio. Mas, sempre que surgem casos concretos com consequências reais, que desafiam as nossas redes de afeto, lógicas de identificação e cumplicidades institucionais, este princípio é abalado. As vítimas reais, e não abstratas, são insuportavelmente imperfeitas.

Uma cultura de dominação masculina, culpabilização das vítimas e crónico descrédito sobre a palavra das mulheres cria uma armadilha virtualmente impossível de superar. Vejamos: se falamos sobre as nossas experiências de assédio, exigem-nos provas irrefutáveis (como, se o assédio sexual ocorre tipicamente em privado, e se a nossa palavra nunca basta?). Se as mulheres não referem nomes concretos, acusam-nas de denúncias incompletas: lembremo-nos das reações ao testemunho de Sofia Arruda e das muitas cobranças para que revelasse o assediador. Se, pelo contrário, as mulheres denunciam perpetradores, são acusadas de arruinar reputações e comprometer o Estado de direito. Se as mulheres denunciam anonimamente, são acusadas de cobardia; se revelam nomes, querem vingança. O escrutínio sobre as vítimas é impiedoso e não há escapatória possível.

Acresce ainda que, quando mulheres pobres e desfavorecidas denunciam homens em posições de poder e privilégio, são acusadas de aproveitamento e oportunismo. Por outro lado, se as mulheres que denunciam são também detentoras de algum capital cultural, simbólico e financeiro, é-lhes dito que tinham mecanismos para se defenderem. (Soma-se, ainda, o típico escrutínio ao comportamento, impossível de satisfazer: se as mulheres reagem e testemunham de forma emocional, são consideradas teatrais ou histéricas, portanto pouco credíveis; se reportam com distância e frieza, são consideradas geladas, cerebrais e manipuladoras, logo pouco credíveis). Todo este xadrez de culpabilização e escrutínio empurra as mulheres para o silêncio – e a violência sexual vive do silêncio.

“Porque não denunciaram antes?”, pergunta-se (sendo que esta pronta inquirição sobre quem denuncia é, perversamente, a razão de manutenção do silêncio). Vejamos: a produção de prova é muitíssimo difícil. As vítimas arriscam-se, aliás, a todo o tipo de represálias, pessoais, profissionais e financeiras – entre as quais a ameaça real de processos por difamação. Numa cultura de impunidade, as vítimas de violência sexual têm o medo legítimo e fundado de serem culpabilizadas, desacreditadas e vilipendiadas quando denunciam.

Não podemos continuar a perguntar “porque não denunciou antes?”. Sabemos a resposta. A pergunta que temos de colocar-nos é: que condições existem para que as vítimas denunciem? Podem fazê-lo em segurança? Que mecanismos de denúncia e que tipos de apoio estão previstos?

Numa altura em que (mais uma vez) se revela como as vítimas perfeitas são as vítimas abstratas, e como as declarações de princípios contra a violência sexual cedem perante os casos concretos, é importante não cair num "são todos iguais". Seria uma forma de derrota coletiva e mais um sinal para a conspiração do silêncio (e, sobretudo, uma injustiça). Nos contextos onde há assédio, há também mulheres e homens que falam, apoiam, que compram guerras que não as suas (muitas vezes nos "bastidores"), que arriscam redes e reputações por casos que não foram os seus.

Porém, a resposta ao assédio não pode ficar refém de fatores arbitrários. Não podemos bastar-nos com boa vontade, coragem e solidariedade entre pares (tantas vezes também precários) e sorte casuística. O problema do assédio sexual é sistémico (tão sistémico quanto o sexismo, que percorre contextos, classes profissionais e clivagens ideológicas). Importa perceber – e combater – as condições estruturais para o silêncio em torno da violência sexual, e adotar medidas tão transversais quanto o problema.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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