O clima em 2022: como falar de aquecimento global durante um nevão?

Em Portugal, e também na Europa, talvez se pudesse criar uma Carta de Risco Climático, ponderando as várias vulnerabilidades, de cheias a secas.

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Reuters/KEVIN HOAK

As imagens que chegam dos Estados Unidos impressionam: o frio extremo soprou até à fronteira do México, confrontou os migrantes que por lá passavam e mais de um milhão de casas ficaram sem electricidade. Mas os fenómenos de frio extremo não escondem o aumento das temperaturas médias. Pelo contrário: apenas ajudam a confirmar a desestabilização da atmosfera, em que massas de ar polares e tropicais já não se encontram da mesma maneira.

Talvez o maior desafio do século, o clima em mudança promete nada deixar intocado, nem nos sistemas naturais, nem nas sociedades humanas. O ar à superfície terá aquecido mais de um grau em média, mas o aquecimento também tem sido registado no solo, nos oceanos e em camadas mais elevadas da atmosfera, bem acima das altas montanhas.

Enquanto os termómetros não mentem, a discussão pública em muitos países é ainda marcada pelo negacionismo, ou por posições que relativizam a importância das alterações climáticas e sentem inércia na mudança de comportamento. Pela inércia térmica dos elementos que compõem o planeta estima-se que, num mundo em que parassem as emissões de gases de efeito estufa, que os calotes polares continuariam a derreter. Em vez disso, as emissões globais continuam a aumentar.

A comunidade científica já debate pontos de não-retorno, ou tipping points, em que a mudança nos sistemas naturais se tornou irreversível. É o exemplo do degelo do Árctico, na degradação da floresta amazónica ou dos desertos tropicais que estão a ficar estéreis com as altas temperaturas. Em muitas regiões do globo, haverá perigo de morte imediata, por exposição a temperaturas elevadas e humidade relativa próxima dos 100%, em que não adianta ao corpo transpirar para arrefecer. Certo é que, de França à Índia, as vagas de calor já trazem uma grande mortalidade, entre cidades que criam ilhas de calor e comunidades rurais com acesso limitado a cuidados de saúde.

O ano de 2022 foi marcado por uma variedade de fenómenos extremos, que nem por coincidência aconteceriam no mesmo ano. Foram as cheias que deixaram um terço do Paquistão debaixo de água, foram tufões no Japão e nas Filipinas, incêndios em Marrocos e na Sibéria, uma seca extrema em grande parte do continente europeu e uma vaga de calor que deixou os parques ingleses tão dourados como a planície alentejana.

Adaptar ao clima em mudança não é, portanto, uma eventualidade, mas uma necessidade. As paisagens que hoje vemos foram formadas em anos mais frios: com vários anos de clima semelhante ao de 2022, haveria outros desertos, vegetação diferente, culturas diferentes, costumes e tradições diferentes. Porém, é preciso admitir: os próximos anos serão, muito provavelmente, ainda mais quentes. Noutras palavras, se o mundo já mudou, continua a mudar: relativizar a adaptação ao clima é apenas resistir à mudança.

Como noutros problemas territoriais mais complexos, não existe fórmula para preparar o território para um clima diferente, por mais útil que fosse. Pode haver princípios globais mas, como disse Paul McCartney, think globally, act locally. Cada região irá ser afectada de maneira diferente a cada momento climático, num clima que não dá sinais de estabilizar. Por isso, havendo tão poucas certezas, parece prudente agir com base em níveis de probabilidade.

Pensando no caso português, no seu contexto europeu, atlântico e mediterrânico, é muito provável que haja falta de água, vagas de calor prolongadas e fenómenos de chuva torrencial. Cheias como as de 1967 e de 2022 poderão repetir-se, e a Reserva Ecológica Nacional, criada por Gonçalo Ribeiro Telles, parece ter protegido pessoas e bens, libertando vales de cheias de novos edifícios.

Em anos de chuva, é fácil esquecer que os anos de seca são cada vez mais frequentes. Num país que consome 40% das reservas de água todos os anos, e um consumo de água por habitante tão elevado, há escolhas importantes a fazer: pode-se consumir menos água? Ou será inevitável criar novas fontes de abastecimento, como dessalinização da água do mar?

Com ou sem água na torneira, a adaptação ao clima tem variadíssimas frentes, e requer pensamento multidisciplinar. Em Portugal, e também na Europa, talvez se pudesse criar uma Carta de Risco Climático, ponderando as várias vulnerabilidades, de cheias a secas. Assim, cada ponto no mapa teria uma pontuação. Seria mais fácil comprar propriedade e tomar decisões informadas, de médio e longo prazo.

Os sinais que chegam das conferências climáticas, como a recente COP27, reforçam a necessidade de contar com um clima mais quente: os países continuam a discordar em metas de redução das emissões de carbono, mas concordaram em criar fundos para responder a catástrofes climáticas. A 27 anos de 2050, haverá Objectivos de Sustentabilidade a cumprir e um futuro a defender - não só para filhos e netos, mas também para quem viver ao longo destes anos.

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