“Tratá-lo como se fosse um animal”

Será que, por um animal ser um animal, não será também merecedor de um tratamento digno, se partilha connosco características moralmente relevantes, como a capacidade de sofrer de forma consciente?

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A célebre trilogia de O Padrinho abre com uma sequência de diálogo icónica, em que um membro da grande família siciliana suplica a Don Corleone que este faça justiça pela sua filha, que tinha sido violentada por dois rapazes americanos e que, de acordo com o mesmo, “tinha sido espancada como um animal”. Ela não tinha meramente sido agredida, e sim de uma forma que fazia lembrar a maneira como se tinha convencionado que se devia espancar um animal.

E, quando o inafundável Titanic de James Cameron estavas prestes a desafiar os cânones da engenharia náutica, depois de se espetar contra um icebergue, um dos seus infelizes tripulantes gritava “Não podes nos manter aqui fechados como animais!”.

Expressões como estas ecoam pela indústria cinematográfica, e abundam também em entrevistas televisivas, peças jornalísticas ou conversas de café. Sempre que o tema badala em torno das condições degradantes a que algum ser humano é sujeito, ouve-se alguém a disparar indignadamente alguma expressão como “tratar pior que um animal” ou “manter preso como um animal”. Existem inúmeras variações da mesma, mas a ideia veiculada é sempre a mesma: a pessoa não está meramente presa, está presa como um animal. Não está a ser maltratada, está a ser maltratada como um animal.

Este tipo de comentário parece sugerir que, de algum modo, somos uma criação à parte do reino animal, sem parentesco com outros seres vivos, e servem a função de alargar o rifte entre a espécie humana e as outras espécies, ou até mesmo de negar a condição biológica do ser humano, em negação da nossa herança darwiniana.

E, de forma ainda mais relevante, uma implicação desta expressão é que é de algum modo legítimo maltratar ou tratar injustamente os outros animais (que não os humanos).

A questão importante que nos devemos colocar perante este tipo de afirmação é se efectivamente precisamos de estabelecer este contraste e excluir os animais da nossa esfera moral de consideração para afirmarmos a nossa dignidade enquanto espécie e indivíduos; será que não poderemos afirmar o nosso valor moral sem nos considerarmos superiores a outros?

E será legítimo tratarmos outras formas de vida sencientes (capazes de experienciar dor e sofrimento) de forma humilhante ou degradante, se não queremos que nos seja dispensado o mesmo tipo de tratamento? Não deveria a moralidade ter como princípio a ideia de que não devemos fazer aos outros aquilo que não queremos que nos façam?

A atitude de proclamar domínio sobre as outras formas de vida pode ter aberto um perigoso precedente, estabelecendo uma dinâmica de poder que extravasa para o domínio das relações humanas, onde os exemplos de relações de abuso de poder e arrogância tribal são inúmeros.

Peter Singer, no seu célebre Libertação Animal, afirmava que, da mesma forma que o racismo ou o sexismo são baseados em crenças irracionais (e não científicas) que justificam a discriminação e opressão de grandes segmentos da população humana, um outro ismo irracional (o "especismo") separa os humanos dos outros animais não humanos e leva-nos a acreditar que temos legitimidade para explorar e oprimir toda a vida animal senciente neste planeta. Talvez por isso os nazis se referissem aos judeus por nomes de animais; a ligação entre os preconceitos é maior do que pensamos.

Sem nos apercebermos disso, uma singela e aparentemente inócua frase como esta pode contribuir para reforçar as dinâmicas de opressão que projectam uma sombra escura sobre o património da humanidade.

Será que, por um animal ser um animal, não será também ele merecedor de um tratamento digno, se partilha connosco características moralmente relevantes, como a capacidade de sofrer de forma consciente?

E, se as pessoas não merecem ser tratadas como animais, será que os animais devem ser tratados como animais?

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