Não falou em amor. Simplesmente, amou

Procura o amor no quotidiano e vais encontrá-lo sem anúncios prévios. Não fales em amor. Simplesmente, ama.

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O amor é multifacetado. Quantos dias acordarmos, tantas versões diferentes teremos sobre esse sentimento. As experiências pessoais ora o comprimem, ora o dilatam. Procurando por ele em alguns dos meus textos antigos, encontrei tantas versões, que hoje já não mais as reconheço inteiramente... as experiências acumularam-se desde então e o amor foi-se metamorfoseando até deixar de ser definitivo em mim. Sobre ele, posso dizer apenas que permanece sendo sentimento. E, como sentimento, é identificável na exteriorização dos gestos.

A poetisa brasileira Adélia Prado, no seu poema Ensinamento, traz uma das reflexões mais pertinentes sobre essa manifestação gestual do amor. Ela começa por dizer que a sua mãe dizia que o estudo era a coisa mais fina (ou importante) do mundo. Contrariando-a, Adélia diz que a coisa mais fina do mundo é, na verdade, o sentimento. Sem dizer directamente a que sentimento se refere, a poetisa relata uma noite em que o presenciou vivamente numa situação ordinária entre seus pais: “Aquele dia de noite, o pai fazendo serão, ela falou comigo: ‘coitado, até essa hora no serviço pesado’. Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.”

A mãe, para quem o estudo era a verdadeira fineza da vida, demonstrava no gesto que Adélia estava certa: o sentimento é mais fino que o estudo. Sabendo do cansaço do pai que trabalhava durante a noite, a mãe arrumava pão e café e deixava o tacho no fogo para o receber no dia seguinte, com a mesa pronta. Adélia observava o amor no serão do pai e na arrumação da mãe. Na noite de trabalho, no pão, no café e no tacho de água quente. O amor que trabalha. O amor que arruma e aguarda. O amor que se importa. O amor que espera à porta. O amor da labuta dureza. O amor que faz pão, café e que põe a mesa. O amor que não é dito, mas que, perceptível, atrai para si todos os olhares. Adélia via a fineza do amor, sentia o luxo da habitualidade de amar.

E assim termina dizendo: “[minha mãe] não me falou em amor. Essa palavra de luxo”. Desde o início do poema o amor não é expresso, somente no penúltimo verso que aparece. Mas, como na vida, sem precisar ser invocado, ele é notável. A coisa mais fina do mundo. Sem precisar dizer que amava o marido, a mãe de Adélia arrumava o amor na mesa. Sem precisar dizer que amava a esposa, o pai de Adélia fazia o amor em serões. Entre serões, cafés, tachos e pães, a palavra de luxo se materializava no quotidiano do lar.

Procura o amor no quotidiano e vais encontrá-lo sem anúncios prévios. Não fales em amor. Simplesmente, ama. Se ainda persistem dúvidas sobre as definições de amor, por ora prefiro observá-lo nos gestos de amar. Digo “por ora”, porque amanhã certamente ele se revelará outro. Sendo como é, o sentimento mais extraordinário manifesta-se nas coisas mais ordinárias da vida. O músico, afinal, estava certo ao cantar que sinónimo de amor é amar. Amor é substantivo abstracto prenhe de verbo concreto: amar.

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