Este país não é para crianças

Que fique esclarecido o leitor: este país não é para crianças. Nem para velhos. Nem para grávidas. Aqueles que, pelas particularidades do momento da vida em que se encontram, deveriam ser mais protegidos pelo Estado, são aqueles a quem o Estado primeiramente falha.

Apesar de sabermos que o vírus que causa a covid-19 não escolhe idades, cor da pele ou estatuto social, não é menos verdade que a pandemia que atravessamos potenciou as desigualdades entre os cidadãos. É verdade que, à luz do Estado de direito democrático em que nos inserimos, somos todos iguais. Mas também é verdade que uns “são mais iguais do que outros”. Se não vejamos: as grávidas e puérperas continuam a ver negado o seu direito a acompanhante durante a gravidez, parto e pós-parto, em vários estabelecimentos hospitalares públicos e privados por esse país fora; os idosos institucionalizados continuam, em muitos casos, a ser privados de sair à rua para dar um passeio, ou de receber a visita da família; e as crianças serão porventura as mais castigadas, continuando a ser-lhes negado o direito a uma infância plena.

As situações que acabo de elencar, e que constituem atentados graves aos direitos humanos e à própria legislação que (ainda) vigora em Portugal, são ilustrativas, mais uma vez, do desnorte das autoridades e da ausência de evidência científica que, não raras vezes, pauta a actuação da Direcção-Geral da Saúde. Só no plano do surrealismo se entenderá que, no mesmo dia em que é autorizada a realização de jogos da Selecção Portuguesa de Futebol e da LigaPro com a presença de público, a directora-geral da Saúde considere que a utilização de parques infantis encerre “um risco acrescido que não vale a pena ter”. No entender de Graça Freitas, “os parques infantis constituem um equipamento lúdico, mas que encerra riscos porque pode originar uma grande aglomeração de crianças sem regras de qualquer tipo”. Estas palavras são proferidas no mesmo país que, há menos de um mês, viu as autoridades policiais encerrarem o Santuário de Fátima por ter atingido o limite de lotação. Limite esse que, na altura, não sabíamos sequer qual era, porque as autoridades competentes não o tinham definido. O mesmo país onde, desde Maio, se pode visitar centros comerciais e hipermercados sem que exista qualquer controlo sobre o número de pessoas que aí se encontram em simultâneo. O mesmo país onde, daqui a umas semanas, se disputa o Grande Prémio de Portugal em Fórmula 1 perante uma plateia de milhares de pessoas. O mesmo país onde, desde finais de Julho, as pessoas podem assistir a touradas.

Que fique esclarecido o leitor: este país não é para crianças. Nem para velhos. Nem para grávidas. Aqueles que, pelas particularidades do momento da vida em que se encontram, deveriam ser mais protegidos pelo Estado, são aqueles a quem o Estado primeiramente falha. Aqueles que, pela situação de vulnerabilidade em que se encontram, deveriam ver os seus direitos acautelados, são aqueles cujos direitos ainda não foram restabelecidos.

As autoridades políticas e de saúde relembram-nos repetidamente que “não há risco zero”. Em qualquer actividade da nossa vida diária, não há risco zero. Este vírus veio mostrar-nos que devemos pôr nos pratos da balança aquilo que fazemos, de forma a podermos avaliar os riscos (de sermos contagiados ou contagiarmos outros) e os benefícios que daí possam advir. Embora as crianças não pareçam ter um papel muito significativo na transmissão da doença, como acontece com outros vírus, podem ficar infectadas e têm capacidade de transmitir o vírus. Ainda assim, autoridades como o Centro Europeu de Controlo e Prevenção de Doenças admitem que as crianças devem interagir umas com as outras, devem brincar, sob pena de testemunharmos um crescimento de problemas como depressão, raiva ou desesperança. Apesar disso, não faltam relatos de escolas onde os intervalos foram reduzidos ao máximo ou de turmas inteiras que têm de lanchar dentro da sala, não podendo usufruir de momentos de pausa nem de ar livre.

No sábado, 10 de Outubro, assinala-se o Dia Mundial da Saúde Mental. Ao longo dos últimos meses, muito tem sido dito sobre a necessidade de todos, enquanto sociedade, prestarmos atenção à saúde mental – à nossa e à daqueles que nos rodeiam. Talvez seja altura de as autoridades nacionais prestarem atenção àquilo que nos dizem os especialistas e protegerem as nossas crianças. Não só do vírus, mas especialmente dos atropelos à infância.

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