Planámos sobre as planárias marinhas e aterrámos na praia das Avencas
Pela primeira vez, Filipa Gouveia, de 21 anos, estudou a diversidade das planárias marinhas em Portugal. Encontrou, nas praias da Avencas (Cascais) e do Baleal (Peniche), uma espécie que se pensava estar confinada ao mar Mediterrâneo.
A superfície rochosa das zonas entre-marés, vista de longe, parece albergar somente dois ou três seres vivos. Só um olhar cuidadoso sobre as poças de água nas reentrâncias da rocha consegue detectar mais animais, geralmente invertebrados. Alguns são ainda pouco conhecidos para a própria ciência. É o caso dos policladidos – ou planárias marinhas, também conhecidas por vermes-achatados. Filipa Gouveia, que terminou o curso de Biologia em Julho, decidiu investigá-los na praia das Avencas (Cascais) e noutros pontos do litoral português. É o primeiro estudo em Portugal sobre a diversidade destes animais.
Mesmo na Península Ibérica e no resto do mundo, o conhecimento sobre os policladidos é diminuto. Em Portugal, existiam apenas referências em guias de campo e fóruns de fauna submarina. Patricia Pérez García, estudante de doutoramento na Universidade de Cádis que investiga os vermes-achatados em Espanha, acompanhou o trabalho de Filipa Gouveia. “Até agora só foram registadas 35 espécies de policladidos na Península Ibérica”, diz Patricia Pérez García. Embora o número pareça significativo, acrescenta, é baixo em termos de biodiversidade de invertebrados, que abrange mais de um milhão de espécies.
Filipa Gouveia, de 21 anos, estudou os policladidos no âmbito da licenciatura em Biologia na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias (em Lisboa) por sugestão do biólogo Gonçalo Calado, seu professor. “Não sabia o que me esperava. Estes seres são muito complicados de estudar. Podia ir à praia dez vezes e não encontrar nada, como podia ir uma vez e encontrar vários organismos destes”, conta.
O termo “policladidos” refere-se à ordem Polycladida. Este grupo de invertebrados quase exclusivamente marinhos incluiu-se noutro conjunto mais lato conhecido por platelmintos. Existem aproximadamente 50 mil espécies de platelmintos, que tanto podem ser marinhos, de água doce, ou terrestres.
Em geral, os policladidos medem entre um e cinco centímetros de comprimento e têm cerca de um milímetro de espessura apenas. A forma plana destes animais favorece a oxigenação dos tecidos através de um intestino ramificado ao longo do corpo, já que carecem de um sistema respiratório.
Bivalves como alimento
O trabalho de campo começou em Outubro de 2018 e estendeu-se até Maio deste ano. Durante esse período, Filipa Gouveia recolheu 41 policladidos. A grande maioria dos exemplares (28) foi capturada na área marinha protegida das Avencas. Sete foram apanhados na praia do Baleal, a norte de Peniche, e três na Arrábida, na Península de Setúbal. Os restantes três foram recolhidos ligeiramente mais a sul, em Tróia.
No total foram identificadas seis espécies. Uma delas foi encontrada exclusivamente em Tróia. Todas as outras cinco foram observadas na praia das Avencas – entre estas está a espécie Leptoplana mediterranea, que se pensava estar confinada ao mar Mediterrâneo. Foi encontrada não só nas Avencas, mas também no Baleal.
O principal habitat dos policladidos, predadores que se alimentam de algas ou bivalves – como ostras e amêijoas –, são os locais rochosos e arenosos entre-marés. A praia das Avencas é o local ideal para encontrar estas planárias, pois possui uma plataforma continental rochosa e vários seres marinhos, lê-se no trabalho de Filipa Gouveia. Outros policladidos podem ainda habitar o fundo do mar, ou simplesmente flutuar na coluna de água.
O tom acastanhado dos vermes-achatados capturados nas Avencas confunde-se com a cor das rochas, o que dificultou o trabalho de recolha. “Como estes organismos gostam pouco de luz, eram geralmente encontrados debaixo das pedras”, completa Filipa Gouveia, que vai tentar publicar o seu trabalho numa revista científica. Com a ajuda de um pincel, a bióloga retirava os organismos das pedras e colocava-os num recipiente com água do mar. A jovem procedia com cuidado, devido à fragilidade dos policladidos. “Quando entram em stress podem sofrer autólise, isto é, as partes do corpo desintegram-se e acabam por morrer.”
As planárias recolhidas foram depois levadas para um laboratório da Universidade Lusófona. Com a ajuda de Patricia Pérez García, Filipa Gouveia fez a análise morfológica e histológica – estudo dos tecidos – dos policladidos, de forma a distinguir as espécies. Analisou aspectos como a cor, a forma do corpo e o tamanho dos animais e ainda as características do sistema reprodutor.
Grande parte dos policladidos apresenta uma superfície dorsal colorida e um ventre transparente. Contudo, em águas temperadas, estes invertebrados são predominantemente acastanhados ou acinzentados. Filipa Gouveia explica que as “principais estruturas [destes seres] são o aparelho digestivo, os tentáculos e os ocelos, um género de olhos que pode ter variadas disposições na parte anterior do corpo”. O aparelho digestivo tem uma só abertura, que funciona simultaneamente como boca e ânus. Assim como os tentáculos, os ocelos – células sensíveis à luz – são estruturas sensoriais que guiam os policladidos na sua locomoção.
Poder regenerativo
As planárias marinhas são hermafroditas. Possuem dois poros genitais, um feminino e outro masculino. Os ovários e os testículos encontram-se espalhados pelo corpo. Também são conhecidos pela elevada capacidade de regeneração, que lhes permite reparar tecidos danificados em 24 horas. Algumas possuem uma ventosa, que as ajuda a prender-se às rochas.
Patricia Pérez García explica que as planárias de água salgada são muito parecidas com as de água doce. No entanto, as de água doce têm maior poder regenerativo, visto que a sua reprodução pode ser assexuada. Por outro lado, as planárias marinhas só conseguem reparar tecidos danificados.
A diversidade de espécies na praia das Avencas variou ao longo dos nove meses de amostragem. De Outubro a Dezembro de 2018, registaram-se quatro espécies: a Leptoplana mediterranea, a Notoplana atomata, Comoplana agilis e a Discocelis tigrina. A primeira foi a única a aparecer nos primeiros três meses. Entre Janeiro e Abril, a Leptoplana mediterranea esteve ausente e praticamente só se verificou a presença da espécie Prosthiostomum siphunculus. Em Tróia, Filipa Gouveia encontrou a espécie Yungia aurantiaca, um policladido avermelhado com as extremidades onduladas e 7,5 centímetros de comprimento.
A espécie que se pensava estar confinada ao mar Mediterrâneo, a Leptoplana mediterranea, não possui ventosa. A ausência deste órgão expõe esta planária a variações nas correntes marítimas e às alterações climáticas. As mudanças no clima é uma das hipóteses apontadas por Filipa Gouveia para justificar a presença desta espécie no oceano Atlântico. A Leptoplana mediterranea pode também ter sido trazida no casco de embarcações. “Quando os barcos não são limpos, são passíveis de criar colónias de algas e de bivalves e tornam-se o habitat eleito dos policladidos”, esclarece Filipa Gouveia.
A escassez de estudos a nível mundial sobre os policladidos deixa em aberto a hipótese de a Leptoplana mediterranea existir em vários locais fora do Mediterrâneo. Filipa Gouveia espera que se façam mais investigações sobre as planárias marinhas. “Há pouco conhecimento em relação à alimentação ou ao modo de vida. É necessário aprofundar esses temas, seja em Portugal ou noutra região do mundo.” Quanto à jovem bióloga, decidiu interromper os estudos e procurar trabalho para “experimentar várias áreas” e ver em qual mais se enquadra. “Gostaria, por exemplo, de trabalhar no Jardim Zoológico ou no Oceanário [de Lisboa] ou em centros de recuperação animal, que se movam pelos valores de protecção e conservação dos animais.”
Patricia Pérez García lembra que a capacidade regenerativa dos vermes-achatados pode ser alvo de investigação na área da medicina e enfatiza qual é o primeiro passo a tomar para que as espécies possam trazer benefícios à humanidade. “É preciso conhecê-las! O estudo das espécies será mais fácil e adequado se tivermos a informação completa sobre cada uma.” A investigadora lamenta ainda que o número de taxonomistas e de pessoas que estudam organismos raros, como os policladidos, esteja a diminuir.
Texto editado por Teresa Firmino