Documentário televisivo revela que doping é prática comum no atletismo russo
A televisão pública alemã transmitiu programa no qual surgem depoimentos comprometedores. Autoridades russas dizem que não actuaram porque não há queixa
“Todos os atletas russos se dopam em algum momento da carreira. Os dirigentes propõem-no aos treinadores e estes aos atletas. Acabas por pensar que não estás a fazer nada de mal”. As palavras são de Yuliya Rusanova, medalha de bronze nos 800m no Europeu de pista coberta de 2011, e constam de um documentário televisivo emitido anteontem pelo canal público alemão ARD.
Testemunhos na primeira pessoa ou situações comprometedoras captadas com recurso a câmaras ocultas revelam como o recurso à dopagem é uma prática generalizada, envolvendo o topo do atletismo russo. Com o título “Dossier secreto doping: como a Rússia fabrica os seus campeões” são apresentados pormenores de como o país de Putin luta para se manter no topo da hierarquia mundial da modalidade, utilizando um esquema criminoso e que beneficia até do apoio governamental.
Num encontro filmado com uma câmara oculta, por exemplo, Mariya Savinova, actual campeã olímpica e vice-campeã mundial de 800m, admite ter recorrido a substâncias dopantes. “Existe toda uma metodologia para impedir que se registem casos positivos. Os funcionários garantem que os atletas não sejam submetidos a testes”, explica Vitali Stepanov marido de Rusanova, castigada em 2013 devido a alterações registadas no seu passaporte biológico. Stepanov foi um ex-dirigente da Agência Antidopagem da Rússia (Rusada).
“O desportista é alvo de muita pressão e no final não lhe resta outra alternativa que recorrer a práticas ilegais”, declara Oleg Popov, treinador de vários atletas apanhados nos últimos anos. "Não digo que não exista alguém ‘limpo’, mas 99% dos atletas, incluindo os melhores, os olímpicos, acaba por ceder”, afirma Evgenia Pecherina, treinada por Popov e “apanhada” duas vezes em 2013 por recurso a um potente esteróide anabolizante e afastada das competições por um período de 10 anos.
A Agência Mundial Antidopagem (AMA) anunciou que vai analisar as denúncias, embora já tivesse em curso uma investigação. Isto porque os 67 atletas russos castigados nos últimos dois anos levantaram suspeitas e obrigaram a que fossem tomadas medidas. Já a Agência Antidopagem da Rússia aguarda que a AMA a questione oficialmente para avançar com uma investigação.
No documentário há dois nomes que são indicados como sendo os cérebros de todo um esquema de corrupção: Gregori Roshenkov, director do laboratório de controlo antidoping de Moscovo e Serguei Portugalov, médico da Federação Russa de Atletismo (ARAF) e elo de ligação entre esta e a Federação Internacional de Atletismo (IAAF) na luta contra a dopagem. De acordo com o documentário, o primeiro encarregava-se de elaborar programas ilegais que permitiam evitar os controlos mais modernos, enquanto o segundo tinha a responsabilidade de os realizar.
Mas as suspeitas em torno do atletismo russo não se ficam por aqui. Num trabalho jornalístico publicado pelo jornal francês L’Équipe, diz-se que os atletas apanhados no doping podiam comprar a sua absolvição. Liliya Shobukhova, a segunda maratonista mais rápida da história, atrás Paula Radcliffe, evitou um castigo antes dos Jogos de Londres 2012 pagando 450 mil euros. “Entreguei o dinheiro e disseram-me: ‘Tudo está bem’”, diz a própria atleta ao jornal.