Pela solidariedade da festa e para que todos possamos dançar

Makas de uma angolana 6 Seremos nós capazes de dançar alegremente com aquele migrante desconhecido no júbilo das nossas vidas?

Aproveitava eu o fim-de-semana para, relaxadamente, colocar leituras em dia quando passei os olhos pela entrevista de João Ferro Rodrigues, nascido nesse ano de boa casta que foi 1976, o ano em que também eu me tornei pessoa, ainda que para fins de cálculos de idade fique bem claro que eu sou bem mais nova do que ele. Ando nos trinta e picos há já uns bons anos.

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Aproveitava eu o fim-de-semana para, relaxadamente, colocar leituras em dia quando passei os olhos pela entrevista de João Ferro Rodrigues, nascido nesse ano de boa casta que foi 1976, o ano em que também eu me tornei pessoa, ainda que para fins de cálculos de idade fique bem claro que eu sou bem mais nova do que ele. Ando nos trinta e picos há já uns bons anos.

Voltando à entrevista quase toda ela centrada no mérito, o economista defende, e o Público destaca, que “É preciso assumir a vantagem de se ter um pai médico em vez de um pai com a quarta classe”. É um facto, e por mais que esta afirmação nos soe à velha teoria filosófica do determinismo profundamente reducionista do ser humano e da sua capacidade de fazer escolhas, o tal livre-arbítrio, na verdade parte importante do xadrez macroeconómico onde estamos inseridos enquanto indivíduos, ainda não conseguiu livrar-se do behaviorismo de Watson e continua intimamente amarrado à propagação hegemónica do darwinismo social que serviu a bandeira ao imperialismo, ao colonialismo, ao racismo, ao fascismo e ao nazismo, por esta ordem. Que marcaram estruturalmente o pensamento dos séculos XIX e XX, legitimando o ideal de uma supremacia racial caucasiana e de uma raça pura que esteve na origem das duas Guerras Mundiais do século XX, refazendo-se do pós-guerra com uma fórmula que solidificou as bases do modelo ideológico capitalista que se propagou um pouco por todo o mundo, enraizando-se nos Estados Unidos da América com a construção do “self-made man”, fazendo uso das asas bem oleadas da indústria de “soap operas” americanas ao serviço da humanização da personagem Michel J. Fox em Family Ties, para depois se afirmar pela Europa, tomar sorrateiramente conta da Ásia e servir como ácido sulfúrico em África.

E com esta afirmação do economista João Ferro Rodrigues ficamos presos nesta ideia mecanicista de que, não tendo um pai médico, pouco mais nos resta do que continuar a encher as fileiras dos Call Center com a carne viva de encarrilhadas gerações das mais capacitadas de Portugal, macroestrutura essa que continua, cada vez mais, ao serviço do ser humano enquanto molde pré-programado e nas mãos de uma macroeconomia seletiva, com um viés assente nas origens, no chá com colher que condiciona toda uma ideia de percurso a uma ideia de comportamento, o tal behaviorismo pavloviano a que, como macacos, estamos todos predestinadamente condenados.

Tudo isto foi real até que a máquina degolou Bernie Madoff e, depois, o mundo, forçosamente empurrado para uma pandemia mundial, decide, na solidão das quatro paredes, dar sinais de sonhar com uma revolução que já se faz sentir na Ciência e no Pensamento, com o surgir de novos Matemáticos e Filósofos a chamarem à atenção para a necessidade de a sociedade perceber que qualquer economia é frágil perante a vontade, o tal livre-arbítrio, do ser humano.

Acerca desta nova janela de oportunidades que nos sugere revermos a História, corrigirmos as disparidades socioeconómicas e retornarmos a esta ideia de percursu tão presente nos princípios éticos da Doutrina Social da Igreja reforçados no Concílio do Vaticano II, é também devido entendermos e aceitarmos os movimentos ativistas pró antirracismo com seriedade, pois do seu discurso de tensão pode resultar o desenferrujar da balança e, como em todos os movimentos dialéticos, obrigar a justiça dos homens a tirar a venda e tornar a balança mais equitativa.

Em 2018 o tema “Diversidade e Inclusão” foi considerado pela primeira vez no World Economic Forum que incluiu no Global Competitiveness Report o indicador “Diversity and Workforce”, levantando assim o véu num momento de escalada das tensões comerciais e de reações adversas contra a globalização, afirmando que a abertura para a temática da diversidade e inclusão pode traduzir-se e impactar o ambiente das lideranças mundiais.

Há uns meses atrás trabalhava num estudo sobre “Diversidade e Inclusão” quando me foi apresentada esta ideia de “convidar para a festa e convidar para dançar”. A ideia, expressa por Nathalie Ballan da Sair da Casca, empresa decana no fortalecimento de um modelo de economia social e numa agilização de um conceito de sociedade sustentável, num webinar promovido por Cristina Barros, diretora de uma revista de gestão, é simples. Sintetizo-a: sempre que se pretenda acionar medidas que impactem a organização socioeconómica de uma comunidade, temos de primeira e obrigatoriamente colocarmo-nos em confronto interior, questionarmos as nossas crenças e levantar o véu do que está na origem da formulação dos nossos próprios conceitos, dos pré-conceitos. Assumir que todos temos preconceitos fruto de uma socialização que nos coloca numa bolha social diferente da do Outro. Na bolha acumulamos experiências que nos fazem ver como comum aqueles que partilharam o nosso espaço social e como incomum ou desigual aqueles que, pelo contrário, nunca estiveram presentes neste nosso horizonte de socialização do qual, no fundo, resulta a nossa afirmação, o nosso eu identitário, a nossa comunicação que se move dentro das construções linguísticas, dos seus conceitos e na bolha dos seus pré-conceitos.

Ora este primeiro passo, o de admitirmos que todos, na formulação do nosso eu identitário, temos crenças do outro que podem não corresponder à realidade, isto é, movemo-nos em bolhas sociais que automaticamente repetem conceitos prévios de algo que não experimentamos, podendo, por isso, induzir-nos em falácias. A isto, a este desnudarmo-nos, “desencaixarmo-nos” do grupo em que nos afirmámos, segue-se a tomada de consciência dos dois passos para a inclusão: o primeiro e mais básico é o convidar para a festa, o segundo e mais inclusivo é o convidar para dançar. Qual a diferença entre os dois? É que a “diversidade” é um ato social de “chamar para a festa” e a “inclusão” é um compromisso social e ético de “chamar para dançar”. Isto é, a diversidade existente na cultura portuguesa não se traduz obrigatoriamente numa organização social inclusiva, ou por outras palavras, não significa que sejam dadas a todas as pessoas, independentemente das suas pertenças, iguais oportunidades de progressão, promoção ou representatividade social. Só pela estandardização de igualdade de oportunidades entre cidadãos independentemente das suas pertenças – de género, étnico-raciais, de território, de religião, de origem social, de orientação sexual – confirmar-se-á a cultura portuguesa como inclusiva, muito para além da óbvia diversidade. Promover a inclusão na sociedade portuguesa, na sua massa criativa, no equilibrar da balança socioeconómica em direção à coesão social é o chamar para a dança todos os elementos que foram colocados no salão de festas.

Por este motivo é tão importante que se entenda, definitivamente, que mais do que enunciar-se “eu não sou racista” é urgente compreender e ser parte deste movimento global de empoderamento das minorias, afirmando sem medos o “eu sou antirracista”.

Por este motivo, de pouco vale refugiarmo-nos nos argumentos “eles é que são os racistas” ou “eles é que estão contra nós, contra a nossa cultura”. Todas as revoluções históricas infligiram mudanças sociais, que se fizeram mais lentamente, e revoluções ao nível das mentalidades, que resistiram por muito mais tempo, décadas até como teorizam os historiadores Jacques Le Gof e March Bloch. Acredito que, a este momento de tensão/ afirmação/ resistência ao discurso antirracista que nos desafia, coletivamente, a reanalisar a História, o Pensamento e a Cultura Portuguesa, mais cedo ou mais tarde se concretizará numa tomada de consciência do eu identitário e no ato de se deixar impactar positivamente pelo outro que lhe é desconhecido.

Encaremos, pois, os movimentos antirracistas não como uma faca apontada, mas como dialéticas obrigatórias que sim, podendo transportar alguma agressividade no seu discurso de afirmação, mais não representam do que a fase do espírito do Leão nietzschiano, que só pede de nós uma reflexão sobre as palavras o beato papa João Paulo II “a solidariedade, portanto, não é um sentimento de compaixão vaga ou de enternecimento superficial pelos males sofridos por tantas pessoas, próximas ou distantes. (...)” É a “(...) determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum; ou seja, pelo bem de todos e de cada um, porque todos nós somos verdadeiramente responsáveis por todos.”

Pensemos nisto, neste apelo à criação de uma maior justiça social, de uma mais forte inclusão social, de uma cada vez mais verdadeira concretização dos princípios da Doutrina Social da Igreja, dos princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos, do artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa.

Seremos nós capazes de dançar alegremente com aquele migrante desconhecido no júbilo das nossas vidas?