Estado de Direito na Europa

Não estamos mais sozinhos, em cada país, abandonados à sorte das demagogias políticas de conjuntura.

Na próxima semana, a Medel – Magistrados Europeus pela Democracia e Liberdades vai debater na Universidade Católica de Lisboa um tema da maior actualidade: o “Estado de Direito na Europa”. Ao contrário do que se pensava até há uns anos, democracia e Estado de Direito não são valores consensuais e irreversíveis na União Europeia (UE). As reformas judiciais na Hungria, primeiro, e na Polónia, logo a seguir, revelaram fragilidades inesperadas nos mecanismos de garantia de princípios europeus estruturantes. A deriva totalitária da Hungria não pôde ser travada porque o Tratado da UE só permite a aplicação de sanções se houver unanimidade dos Estados-membros, o que é impossível com Hungria e Polónia a protegerem-se mutuamente. Numa reviravolta acidental, mas virtuosa, as coisas evoluíram de maneira diferente no caso da Polónia, com o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) colocado no centro do processo de reconfiguração do “constitucionalismo” europeu.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Na próxima semana, a Medel – Magistrados Europeus pela Democracia e Liberdades vai debater na Universidade Católica de Lisboa um tema da maior actualidade: o “Estado de Direito na Europa”. Ao contrário do que se pensava até há uns anos, democracia e Estado de Direito não são valores consensuais e irreversíveis na União Europeia (UE). As reformas judiciais na Hungria, primeiro, e na Polónia, logo a seguir, revelaram fragilidades inesperadas nos mecanismos de garantia de princípios europeus estruturantes. A deriva totalitária da Hungria não pôde ser travada porque o Tratado da UE só permite a aplicação de sanções se houver unanimidade dos Estados-membros, o que é impossível com Hungria e Polónia a protegerem-se mutuamente. Numa reviravolta acidental, mas virtuosa, as coisas evoluíram de maneira diferente no caso da Polónia, com o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) colocado no centro do processo de reconfiguração do “constitucionalismo” europeu.

Tradicionalmente, a organização do sistema de justiça, os estatutos das magistraturas e a composição dos seus órgãos de governo eram vistos como assuntos internos dos países. Porém, numa decisão proferida em 17 de Fevereiro de 2018, curiosamente num caso colocado pelos juízes portugueses, que assim prestaram um serviço valioso ao projecto europeu, o TJUE fez uma afirmação nova e decisiva. Uma vez que os tribunais nacionais também aplicam direito europeu, os sistemas internos dos Estados-membros são obrigados pelo Tratado da UE a assegurar aos juízes condições de efectiva independência e o TJUE é o órgão competente para verificar essas condições e impor o seu cumprimento.

Com esta jurisprudência inovadora, a Comissão, passando ao lado da utópica regra da unanimidade na aplicação de sanções, abriu no TJUE vários processos de incumprimento contra a Polónia, com desenvolvimentos relevantes. Num deles, o TJUE mandou a Polónia suspender a legislação interna que reduziu a idade de reforma dos juízes “rebeldes” do supremo tribunal com efeitos retroactivos e permitiu o prolongamento discricionário dos mandatos dos juízes “amigos”, considerando que se tratou de uma purga violadora da independência. Noutro caso, o TJUE obrigou a Polónia a suspender a câmara disciplinar estabelecida com elementos da confiança do governo para punir os juízes “rebeldes” que contestem a ordem judicial autoritária recorrendo à legislação europeia. Como a Polónia não cumpriu a decisão e o seu Tribunal Constitucional, com uma maioria de juízes “simpatizantes” do governo, num braço de ferro perigoso, decidiu que o seu direito interno prevalece sobre os Tratados da UE e as sentenças do TJUE, acabou condenada a pagar a astronómica quantia de um milhão de euros por cada dia que se recusar a executar o que lhe foi imposto.

Neste reconfigurado equilíbrio de poderes na UE, a violação da independência judicial deixou de ser apenas sancionada com inócuos mecanismos de censura política e pode agora ser punida com pesadas multas de centena de milhões de euros. Assuntos que pareciam exclusivos da Hungria e da Polónia são agora do interesse de toda a UE. Uma boa notícia para a saúde da democracia na Europa e um sinal muito sério para os países – e são tantos aí à espreita, disfarçados de democracias – onde as pulsões do populismo iliberal, mesmo que legitimadas pelo voto, cedam à tentação de desmantelar as garantias do Estado de direito e da independência judicial.

Em Portugal, diz-se de todos os quadrantes políticos e sociais que a justiça sem remédio tem de ser reformada de alto a baixo. Não se vê unanimidade na identificação do problema – independência; integridade; eficiência? –, consenso na definição do objectivo – mais autonomia; mais controlo? – nem acordo sobre os meios, prazos e áreas de intervenção, mas, seja como for, aquilo que todos temos hoje de perceber é que os limites para mudar factores estruturais na justiça já não são apenas os que resultam do mandato eleitoral nem da Constituição. Estamos igualmente vinculados, e com supremacia, aos princípios do Estado de Direito estruturantes da UE. Não estamos mais sozinhos, em cada país, abandonados à sorte das demagogias políticas de conjuntura. Há na UE um tribunal que zela pela continuidade do projecto democrático na Europa. Ainda bem.

O autor é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico