O voo dos pássaros

É disso que tenho saudades: de guardar lugares que um dia ainda estarão intactos na minha memória. De nenhuma poluição os ter modificado.

Foto
"Hoje o ruído é grande e eu queria saber se os pássaros ainda falam a linguagem secreta da minha infância" Mag Rodrigues

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Às vezes lembro-me de uma tarde (que parece imaginária) quando o meu irmão me levou a ver a reserva ornitológica do lugar onde vivíamos. Escondia-se ali, afinal, um tesouro onde, numa longa extensão, os pássaros pousavam e pareciam inventar uma linguagem deles.

Era o tempo do silêncio. O vento sussurrava no canavial e por mais que isto pareça literatura importada, vem de quem teve a oportunidade de a viver. Por isso foi um privilégio viver no campo: uma janela fecunda sobre o que é a vida. Foi uma sorte ter arranhado as mãos em tudo o que na altura parecia vão e era afinal parte da minha identidade.

Hoje iríamos procurar o que significa ‘ornitológica’, mais ‘reserva’, mais ‘lugar onde existem’. Hoje vamos à procura dos lugares aonde não arriscamos chegar. Se não está no top dos melhores do mundo, arrisca-se ao anonimato.

Eu vivi nesse lugar onde só nós sabíamos quem éramos, onde estávamos. O que havia para descobrir.

Volto agora vezes sem fim à aldeia aonde cresci. Peço ao táxi que me leve ali de volta. São cinco minutos para respirar o ar que o mar devolve e agora no Inverno mesmo não sentindo o cheiro das manhãs que eram húmidas sendo de verão, consigo recordar tudo. Do táxi avisto a infância, mas hoje é a reserva ornitológica de novo. Sabem o que queria? Voltar agora lá e fazer uma banda sonora que me acompanhasse ali horas. A brisa terna acompanhando a aterragem calculada dos pássaros no aeroporto que só eles sabem que existe.

Um dia, o meu irmão também ficou a saber que esse lugar mágico estava perto de nós. E levou-me com ele. É disso que tenho saudades: de guardar lugares que um dia ainda estarão intactos na minha memória. De nenhuma poluição os ter modificado. De não terem que caber em nenhuma tabela dos melhores do presente como se dali quiséssemos fazer futuro. Tudo o que andamos a fazer neste momento é a forjar futuro. E sim, isso assusta-me.

Hoje, em muitos momentos, quero voltar ao acampamento dos pássaros adivinhando-lhes a linguagem secreta com que decidem aterrar e preparar voos futuros. Divago na minha própria memória sobre essa tarde mágica em que lá fomos, e, atrás do que parecia não existir, erguer-se um lugar onde agora quero ouvir canções e registar momentos. Voltando lá arriscava-me a estragar tudo nesta voragem de querer guardar memórias com a ajuda de meios que não coabitam com os pássaros.

Das coisas que facilmente guardaremos na queda livre para a morte são os pássaros a desenhar no céu uma orquestra negra que se expande e recolhe nesse esboço feito a tinta-da-china e que pensamos ser obra do Criador: até os mais cépticos parecem acreditar nesse traço divino que se ergue diante dos nossos olhos.

Passei a estar atenta ao voo dos pássaros: à forma como se organizam pousados num muro ou perfilados num telhado. Os pássaros, que me escaparam ao olhar durante décadas, lembram-me agora aquela tarde que só cabe em livros no campo secreto e extenso onde aterravam. Um segredo que eu e o meu irmão guardávamos. Um segredo que muitos outros conheciam. Um tempo em que ainda não quantificávamos as coisas mas as tínhamos como sagradas e sobre as quais fazíamos silêncio.

Hoje o ruído é grande e eu queria saber se os pássaros ainda falam a linguagem secreta da minha infância.