Com as lentes do privilégio, a acessibilidade é um luxo

Não quero, enquanto cidadã, apenas poder viver no terceiro esquerdo porque utilizo cadeira de rodas de forma permanente. Exijo que sejam garantidos os meus direitos. E a acessibilidade é um deles.

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Paulo Pimenta

“Uma coisa que é fundamental é mudar a legislação sobre a habitação. A legislação portuguesa é um luxo. É impossível fazer casas, casas económicas. Tudo tem de ter 1,5 metros para os deficientes darem a volta em cadeira de rodas. Mas quer dizer, nem todo o habitante português está numa cadeira de rodas. Se ele partir as pernas, ou não sei quê, muda para o terceiro esquerdo ou para o segundo direito, por aí fora. Portanto, toda essa legislação, as áreas e tudo... devem ser as melhores casas que há.”

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“Uma coisa que é fundamental é mudar a legislação sobre a habitação. A legislação portuguesa é um luxo. É impossível fazer casas, casas económicas. Tudo tem de ter 1,5 metros para os deficientes darem a volta em cadeira de rodas. Mas quer dizer, nem todo o habitante português está numa cadeira de rodas. Se ele partir as pernas, ou não sei quê, muda para o terceiro esquerdo ou para o segundo direito, por aí fora. Portanto, toda essa legislação, as áreas e tudo... devem ser as melhores casas que há.”

Esta é uma transcrição de um discurso proferido por Souto de Moura, convidado do programa da RTP Primeira Pessoa, que foi transmitido no passado dia 11 de Outubro. Sim, a profissão (arquitecto com cargos de educação e formação) e a reputação (arquitecto premiado internacionalmente) exigir-lhe-iam outra postura, outro cuidado e outra responsabilidade no discurso e na atitude. Sim, os outros intervenientes na conversa, que não refutaram o pensamento e agiram com inércia e silêncio, deveriam, na minha opinião, ter assumido uma posição de desagrado, caso não concordassem com este pensamento capacitista. O que me parece não ter sido o caso. E sim, a RTP, como canal público, não deveria perpetuar pensamentos capacitistas, de exclusão e marginalização. No entanto, o meu convite à reflexão de hoje não pretende que o foco seja a pessoa que proferiu as palavras, mas sim a mensagem transmitida.

Mensagem de exclusão e capacitismo. Dizer que a nossa legislação, ainda muito incompleta e com falhas no que diz respeito às acessibilidades, é um luxo significa ter as palavras toldadas pelos próprios privilégios. A nossa legislação, especificamente o “Regime da acessibilidade aos edifícios e estabelecimentos que recebem público, via pública e edifícios habitacionais”, pretende proteger as pessoas com deficiência da exclusão e discriminação que sofrem diariamente. Exclusão essa imposta pelas barreiras, neste caso físicas, que enfrentamos no nosso quotidiano.

Ainda que a necessitar de uma revisão urgente (não no sentido do pensamento capacitista que deu mote a esta reflexão), esta legislação é o que permite, de alguma forma, diminuir a discriminação que sofremos diariamente. E como se garante a acessibilidade? Ora, de diversas formas, mas uma delas é, sem dúvida, fomentando a arquitectura inclusiva.

A arquitectura é uma disciplina antiga e não sou entendida para explicar toda a sua história. Mas fui estudar. O capacitismo reflectido na prática e na formação de alguns profissionais da área parece ter bastantes razões históricas, como de resto praticamente todas as acções capacitistas têm. A criação de uma forma humana padronizada, até divina, foi projectada para a construção de habitações e espaços públicos, para a grande frustração de pessoas que, como eu, não se enquadram nesse modelo padrão. Começando no Renascimento, com o Homem Vitruviano, onde o homem e a arquitectura tinham proporções consideradas perfeitas e ideais: “para que qualquer edifício seja belo deve ter simetria e proporções perfeitas, como as encontradas na natureza”, escrevera Vitrúvio.

Mergulhando no Le Modulor, de Le Corbusier, projecto que contribuiu para a projecção da arquitectura segundo o “homem ideal” que consiste num “... espectro de medidas harmoniosas para se adequar à escala humana, universalmente aplicável à arquitectura...”, mas que falha na integração de um design universal. Uma relação ortopédica entre o corpo e a arquitectura, que ainda se reflecte nos dias de hoje — “se partir as pernas, muda para o terceiro esquerdo” —, moldando a sua vida às características arquitectónicas que lhe são oferecidas.

A arquitectura e a nossa sociedade já não se podem basear nestes conceitos ultrapassados e segregadores. Os arquitectos devem dar asas à sua criatividade dentro das leis e directrizes que garantam acessibilidade adequada para todos. O objectivo final de um projecto de arquitectura deverá ser a garantia de acessibilidade de todos os indivíduos que potencialmente poderão vir a usufruir desse espaço. É necessário que quem projecta, por exemplo, uma habitação, se coloque no lugar do potencial utilizador e entenda a diversidade humana e as necessidades de todos. Quando se constrói para todos, constrói-se para a verdadeira inclusão.

A nossa legislação não é nem nunca foi restritiva, nem muito menos um luxo. A única restrição para um arquitecto é a sua própria imaginação, que tem de ser livre garantindo a inclusão e acessibilidade. Projectar e desenhar espaços para a diversidade humana só deve aguçar e melhorar a criatividade de um projecto. Várias ferramentas utilizadas no quotidiano foram desenvolvidas porque se pensou na pluralidade da nossa sociedade: legendas, comandos à distância, tecnologia de contraste de luz nos telemóveis, faixas pedonais subidas, entre muitas outras. As possíveis restrições que existiam só devem fazer com que se aumente o foco e se olhe para as coisas de uma perspectiva diferente, projectando um design universalmente inovador e benéfico, identificando possíveis falhas que uma visão não tão abrangente teria deixado escapar.

Caminhemos no sentido de uma arquitectura e de uma sociedade que atribua liberdade para todos os seus utilizadores e abandonemos práticas e pensamentos sufocantes, onde nós, humanos, e, em particular, nós, pessoas com deficiência, nos tornamos escravos das nossas habitações, dos espaços e da sociedade onde vivemos. As restrições de uma arquitectura que me exclui não são apenas inconvenientes, são marcadores físicos de um ambiente que historicamente tem vindo a contribuir para a marginalização da pessoa com deficiência. A nossa legislação assenta no compromisso nacional de garantia de uma sociedade inclusiva, em que todos os cidadãos podem aceder a todos os recursos em condições equitativas.

Não quero, enquanto cidadã, apenas poder viver no terceiro esquerdo porque utilizo cadeira de rodas (não porque parti as pernas) de forma permanente. Exijo que sejam garantidos os meus direitos. E a acessibilidade é um deles. Não é um luxo, não é um privilégio, muito menos um favor. É um direito humano fundamental. E, acreditem, todos beneficiamos com ela.