Uma década com a casa às costas

No 10.º aniversário do P3, estendemos o Megafone a dez vozes para falarem de dez causas. O que mudou numa década? Como será a próxima? O arquitecto Aitor Varea Oro reflecte sobre o problema da habitação.

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Nasci em Valência, mas saí do ninho no Porto, onde fiz o meu Erasmus entre 2005 e 2006. Não espanta por isso que, em Maio de 2011, enquanto participava no movimento de indignados que encheu as praças de Espanha, parte do meu desconforto tivesse sotaque luso. Sabia, porque tinha deixado amigos em Portugal (e porque regressava todos os anos), que a situação, difícil, só ia piorar. Neste contexto, faziam-me todo o sentido duas mensagens que, aos poucos, saltavam do coração à cabeça, tanto dos meus colegas de protesto, como dos que acompanham os acontecimentos na televisão e nos jornais. A primeira tinha a ver com um sentimento de descrença generalizada na classe política: “Não, não, não nos representam”! A segunda estava relacionada com a necessidade de pôr as instituições a funcionar para uma maioria: “Isto não é a esquerda contra a direita, são os de baixo contra os de cima!”

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Nasci em Valência, mas saí do ninho no Porto, onde fiz o meu Erasmus entre 2005 e 2006. Não espanta por isso que, em Maio de 2011, enquanto participava no movimento de indignados que encheu as praças de Espanha, parte do meu desconforto tivesse sotaque luso. Sabia, porque tinha deixado amigos em Portugal (e porque regressava todos os anos), que a situação, difícil, só ia piorar. Neste contexto, faziam-me todo o sentido duas mensagens que, aos poucos, saltavam do coração à cabeça, tanto dos meus colegas de protesto, como dos que acompanham os acontecimentos na televisão e nos jornais. A primeira tinha a ver com um sentimento de descrença generalizada na classe política: “Não, não, não nos representam”! A segunda estava relacionada com a necessidade de pôr as instituições a funcionar para uma maioria: “Isto não é a esquerda contra a direita, são os de baixo contra os de cima!”

No caso da habitação, o diagnóstico encaixava que nem uma luva. Em Espanha, já antes dos protestos que ficaram conhecidos como 15M, a Plataforma de Afectados por la Hipoteca tinha desempenhado duas tarefas essenciais: dificultar os despejos e relembrar, aos despejados pelos bancos, que eles eram vítimas e não culpados. A sua porta-voz deu também um passo importantíssimo: saltar do activismo para a política institucional, para transformar o descontentamento em transformação social. Em Portugal, a transformação da habitação em mercadoria foi conduzida por poucos e à custa de muitos, com uma cascata de reformas ao quadro financeiro e legislativo que acentuou a diferença entre o “nós” e o “eles”. Graças à Lei Cristas, aos Vistos Gold e a outras medidas levadas a cabo pelo governo legitimamente eleito, quem tinha facilidade em aceder ao crédito bancário e dificuldade em perceber a função social da habitação viu reunidas as condições para fazer bons negócios. O resto (o bom, o irrelevante e o mau) veio por arrasto.

As chamadas medidas de austeridade serviram para reabilitar os centros históricos, mas para isso foi necessário secundarizar quem lá vivia e adiar a resolução dos problemas estruturantes do parque habitacional. As intervenções, fraquíssimas do ponto de vista técnico porque assim o permitiu o Regime Excepcional de Reabilitação Urbana, eram suficientes para alavancar o ansiado investimento estrangeiro, mas não as necessárias num país onde, segundo o Eurostat, 27% das casas têm problemas significativos de infiltrações e 19% dos agregados não conseguem aquecer a sua casa no inverno. Em 2011, a dificuldade de acesso ao mercado de arrendamento colocava-se, “apenas”, para as populações de menores recursos. Hoje, segundo as estatísticas, este problema atinge-nos a todos. Em dez anos, os valores das rendas cresceram em média cerca de 15%, fazendo com que o número de agregados que investem mais do que 40% dos seus rendimentos em despesas com habitação aumentasse de 17,6% para 26,3%.

Quando regressei a Portugal em 2014, em plena celebração dos 40 anos do 25 de Abril, aprendi três coisas bastante úteis. Primeiro, que o problema da habitação é tão complexo que as pessoas, sozinhas, não o conseguem resolver. Segundo, que para o resolver não nos podemos juntar só aos nossos pares ou camaradas (tentaremos ter razão, mas não conseguiremos ter impacto). Terceiro, que, se queremos que as coisas mudem, teremos de arregaçar as mangas e enfrentar os problemas concretos que a teimosa realidade nos devolve assim que tentamos implementar ideias que não funcionam. Para constatar que o wishful thinking não funciona, temos apenas de olhar para o que aconteceu desde 2015 em Espanha – onde grande parte dos activistas eleitos durou apenas um mandato – e em Portugal – onde a catrefada de programas públicos lançada pelo Governo desde 2017 me faz às vezes pensar que se está a legislar para outro país.

Nas últimas semanas, tenho dado por mim a pôr, lado a lado, a queda da Lehman Brothers e a pandemia da covid-19. Duas sensações assaltam a minha cabeça: que nesta década passaram 30 anos e que a Europa dá agora a si própria uma segunda oportunidade. Apesar de tudo, não é o mesmo ir de bazuca na mão do que de corda ao pescoço. Contudo, também não quero levar tão a sério como o primeiro-ministro o velho ditado que nos recomenda a deixar o pessimismo para tempos melhores. Se queremos resolver os problemas habitacionais do país no 50.º aniversário do 25 de Abril –esqueçam lá isso, missão impossível – temos duas tarefas pela frente. Para ser mesmo quem mais ordena, o povo tem de ser capaz de usar o poder público. Para recuperar a confiança perdida, o poder público tem de ser mais mediador do que fiscalizador. É isto que pedíamos há dez anos nas praças. Na próxima crise, pode ser tarde demais.