A habitação como mercadoria
O que é que este vocabulário tem que ver com o preço da habitação? Nada, pensarão
alguns. Tudo, diria Manuel B. Aalbers,
investigador da Universidade de Lovaina, que com os seus estudos tem centrado a
habitação na lógica da economia
política, definindo em 2017 a financeirização enquanto “o domínio crescente de
actores financeiros, mercados, práticas,
medidas e narrativas, em várias escalas, resultando numa transformação estrutural
das economias, das empresas (incluindo
instituições financeiras), Estados e famílias”.
Dito de forma mais simples: no seio do sistema capitalista, o sector financeiro é
aquele em que se acumula riqueza sem
recurso a meios de produção propriamente ditos. Não são necessárias matérias-primas
nem máquinas. A lógica da economia
financeira é fazer mais dinheiro do que o dinheiro que se tem.
David Madden, professor de Sociologia na London School of Economics and Political
Science, e Peter Marcuse, professor
emérito da School of Architecture, Planning and Preservation da Universidade de
Colúmbia, no livro In Defense of Housing
(“Em defesa da habitação”), centram o tema: “A habitação
transformou-se numa mercadoria, tornando as desigualdades da
cidade cada vez mais agudas. O lucro tornou-se mais importante do que a necessidade
social. Os pobres são forçados a
pagar mais por casas piores. As comunidades enfrentam a violência do deslocamento e
da gentrificação.
E os benefícios de uma habitação condigna estão disponíveis apenas para quem os pode
pagar.”
O tema da financeirização da habitação está a ser estudado um pouco por todo o
mundo. Em Portugal também. Ana Cordeiro
Santos, investigadora da Universidade de Coimbra, dedicou-se exaustivamente
ao tema enquanto coordenadora do Finhabit,
um projecto de investigação que culminou na publicação de“A nova questão da habitação
em Portugal” pelo Observatório
sobre Crises e Alternativas. Este trabalho mostra como o nexo
finança-habitação tem vindo a acentuar desequilíbrios e desigualdades. O escrutínio
feito às políticas públicas levadas a cabo em Portugal atesta que agravaram a
transformação da habitação num activo
financeiro transaccionável. Entre as políticas públicas lançadas no período
compreendido entre 1987 e 2011 sobressai o
apoio dado à bonificação de juros do crédito à habitação, que consumiu 73% do
financiamento público atribuído ao sector
habitacional.
Os apoios públicos em Portugal serviram, pois, sobretudo para incentivar a
compra de casa própria com recurso ao crédito
bancário, o que ajuda a perceber porque é que nas áreas metropolitanas de
Lisboa e Porto 68% e 67% das famílias,
respectivamente, são proprietárias da casa em que habitam. Nos outros casos,
que envolvem as famílias de menores
recursos financeiros, os municípios poderiam assegurar o acesso à habitação
a custos controlados ou com rendas sociais.
Mas quando se começou a instalar a crise financeira em Portugal, e era então o
actual primeiro-ministro, António Costa,
presidente da Câmara de Lisboa, chegou a equacionar-se a venda de bairros municipais
na capital, à semelhança do que já
estava a ser feito noutras cidades da Europa. Berlim, por exemplo, foi vendendo os
seus bairros municipais. Só em 2004
vendeu uma empresa municipal que geria 65 mil fogos a um consórcio de empresas em
que sobressaem fundos internacionais
como a Goldman Sachs ou o Cerebus.
António Costa não vendeu os bairros municipais — mas pensou seriamente nisso, como contou, anos mais tarde,
a então vereadora da Habitação e posteriormente presidente da Assembleia Municipal
de
Lisboa, Helena Roseta. Em Lisboa houve, no entanto, outros exemplos, como a venda do portfólio de habitação da Fidelidade
ao fundo Apollo, dos chineses da Fosum. E, de repente, os inquilinos de 271 imóveis,
espalhados por todo o país, mas com
particular incidência em Lisboa e Porto, mudaram de senhorio. A Apollo, que pagou
425 milhões de euros por esta carteira
de imóveis, nunca escondeu que
pretendia aliená-los de novo — e por causa disso não lhe foi cobrado, na
altura da
transacção, o respectivo Imposto
sobre Transacção de Imóveis (IMT).
Ao mesmo tempo que as autoridades de supervisão europeias instavam os bancos a
livrarem-se dos seus ativos tóxicos — o
que incluía os portfólios imobiliários não rentáveis —, em Portugal abria-se (mais)
a porta ao investimento estrangeiro.
O sector imobiliário em Portugal — que não sofreu com os efeitos de uma bolha, como
em Espanha, mas onde também houve
uma descida abrupta de preços — respirou de alívio, quando se avançou com os
incentivos à captação de investimento
estrangeiro. Luís Lima, presidente da Associação dos Profissionais e Empresas de
Mediação Imobiliária (APEMIP), refere
que o programa de “vistos gold” foi o balão de oxigénio que permitiu ao sector
manter-se à tona.
Em Agosto de 2012 foi publicada uma alteração à lei de estrangeiros que previu, pela
primeira vez, a atribuição de uma
autorização especial de residência por investimento (ARI) a todos os cidadãos
estrangeiros que, entre outros critérios,
pudessem investir 500 mil euros em imobiliário. Esta autorização de residência
acabou por atrair investidores de vários
cantos do mundo, que, à custa de meio milhão de euros, conseguiam acesso ao espaço
Schengen e não tinham sequer
obrigação de permanecer em Portugal mais do que uma semana por ano.
Em 2012 ainda foram atribuídos dois vistos. Em 2013, dispararam para 494; em
2014, foram atribuídos 1526, o máximo de
sempre. Em 2015 foram 766; 1414 em 2016, 1351 em 2017, 1409 em 2018, 1245 em
2019 e no ano passado, ano de pandemia,
1182. Nos oito anos que leva de vigência, foram atribuídos 9389 “vistos
gold”. Isto dá uma média de menos de duas mil
casas por ano. Se pensarmos que todos os anos há cerca de 150 mil
transacções, não deveria ser o investimento feito em
dois mil casos que iria intervir na fixação de preços.
Esse é o argumento que a Associação Portuguesa de Promotores e Investidores
Imobiliários (APPII) avança para recusar a
ideia de que os “vistos gold” são responsáveis pela especulação. “Não foram os 56
‘vistos gold’ concedidos na Área
Metropolitana do Porto em cinco anos e meio que provocaram a especulação
imobiliária”, dizia ao PÚBLICO Hugo Santos
Ferreira, referindo-se aos dados conhecidos desde o arranque do programa, em 2013,
até ao final do primeiro semestre de
2018, última vez que o Ministério da Administração Interna informou sobre a
localização geográfica dos vistos
concedidos, a pedido de um deputado do Bloco de Esquerda.
Foi a olhar para esses números que o PÚBLICO percebeu que, desde o final de 2012
(início dos “vistos gold) até ao final de 2017, o concelho de Lisboa
concentrou 47% dos “vistos gold” ligados ao imobiliário (correspondentes a
2423 ARI), cabendo outros 13% a Cascais (672 ARI). Já o Porto ficou-se pelos 1%
(31), o que coloca este concelho atrás
de outros da Área Metropolitana de Lisboa, como Oeiras e Sintra ou até Palmela e
Almada.