O casal

Quando a generosidade é comum a ambos, o amor também é mais sólido.

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"Não concebo um amor em vão que passa a ser nada depois de termos julgado ser para a vida toda" Mag Rodrigues

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Quim lia o jornal todos os dias. Folhas grandes a mancharem a mesa na casa sempre fresca. Comentava as notícias de cavalheiros menos educados que desgraçadamente tinham caído no furto, meliantes sem dó que arrancavam fios do pescoço de senhoritas indefesas. Quim falava assim mesmo. Tinha uns óculos de massa grandes. Assemelhava-se a um realizador italiano com as suas graças que facilmente saíam da cartola e enchiam a sala, a rua, compunham de imediato o nosso desconforto.

Ele, sim, era um cavalheiro.

A casa tinha dois andares e talvez um sótão. Já não me lembro com exactidão. Era fria de Inverno, aquela humidade que cobre o Porto o ano todo e se agrava no tempo das geadas. O quintal, (como todos os outros) ficava coberto de uma película branca que parecia derreter com o puxar dos estores. Rangia o plástico ondulado e a geada perdia-se numa vénia invisível.

Sentia-se o frio da casa nas colchas brancas pesadas mas depois descíamos e na cozinha Guida aquecia o meu mundo com as suas lulas recheadas. Não sei por que razão Guida gostou tanto de mim na altura: via nela o prazer de me dar com o seu tempo, os melhores trunfos culinários.

Guida e Quim eram o amor. Eram raros na sua união. Ela mais austera e determinada, ele deleitado com o tempo que vivera e que já não vinha nos jornais.

Um dia, quando me separei do meu marido, atordoada entre dores várias, foi neles que pensei. Eram eles que me seguravam àquela larga família. Eram muitos mas ninguém igual ao Quim e à Guida. Eles eram os avós que qualquer neto sonhara ter: sentávamo-nos à mesa a ouvir as histórias da última viagem deles e das peripécias que Quim coloria com facilidade. Era isto com o jornal dobrado em quatro, o cheiro da cozinha a inundar a casa, Guida disposta a combater a velhice mexendo-se para todo o lado, sendo a voz que as filhas respeitavam e talvez até temessem. Curioso como nunca a temi. Apetecia-me abraçá-la por ela me dar o tempo que levara a fazer o seu empadão, as lulas, tudo o que a minha gula mimada pedia.

Continuo a ser amiga do meu ex-marido ainda que os anos nos tenham afastado mas a essência do que nos uniu, não. Não concebo um amor em vão que passa a ser nada depois de termos julgado ser para a vida toda.

Há dias li um pequeno texto dele em que falava de como gostava que o avô Quim estivesse vivo para partilhar com ele a alegria de um momento específico. Então voltei a lembrar-me daquele casal que parecia nunca ter passado pelo desencanto ou pela monotonia. Talvez tivessem passado pela angústia na hora do jantar quando o silêncio não arranja forma de inventar palavras novas, experiências vividas, um ai ou ui que preencha um vazio que mora por vezes na rotina. Talvez eles tenham passado por isso mas disfarçavam-no bem entre colecções de chávenas que vinham do mundo inteiro e onde o pó gostava de se encostar. Só isso, já era motor suficiente para os manter ocupados. Elas, as chávenas, vinham à mesa como troféus para serem mostradas com esse regozijo da conquista.

Melhor ainda se tivessem sido desviadas de um lugar recôndito onde os preços só permitiam mesmo um café e um passeio até à carteira da Guida ou ao bolso do Quim. Sei que enquanto as lulas fumegavam no meu prato feitas de arroz e enchidos, Quim contaria essa e outras aventuras. Talvez voltasse ao canto do jornal que expunha a melhor história do dia. Entre furtos, a página da necrologia, a volta a Portugal em bicicleta, a demolição das casas clandestinas. Havia muito a caber no meu prato, naquele jornal, naquela casa e, sobretudo, na generosidade daqueles dois.

Confirmo que quando a generosidade é comum a ambos, o amor também é mais sólido.

Chávenas do mesmo serviço.